BALAIO PORRETA 1986
nº 1968
Natal, 7 de março de 2007
Poema/Processo, 40 anos
MEMÓRIAS, CONTRAMEMÓRIAS
Em 2002, o médico e amigo caicoense Oberdan Damásio dos Santos - um caba da peste botafoguense da melhor qualidade - solicitou-nos um pequeno artigo sobre a cidade de nossos alumbramentos juvenis, em pleno Seridó norte-rio-grandense, para publicação na imprensa local. Ei-lo na íntegra, apesar das inevitáveis repetições, com pequenos acréscimos:
UMA VEZ CAICÓ, SEMPRE CAICÓ
Em Caicó, aprendi a amar o cinema. Em Caicó, aprendi a amar os quadrinhos. Em Caicó, aprendi a amar o Fluminense. Em Caicó, nasceu o meu interesse pela poesia e pela literatura. Em Caicó, mergulhei simbolicamente na magia do Poço de Santana. Entre suas ruas e serrotes, fiz grandes amizades: Eduardinho, Rubinho, Irandi, José Geraldo, tio Silvino... Entre suas praças e escolas, tive mestres memoráveis, que me despertaram para o saber e para o sabor da vivência a mais humanística possível: na infância, Da. Teresa Mota e Da. Lourdes; na adolescência, Pe. João Agripino, Mons. Walfredo Gurgel, Pe. Galvão, Prof. Levi. E outros. E outros.
Em Caicó, vivi os anos 50, ainda sem conhecer o rock e a poesia concreta (a não ser, superficialmente, através das páginas d'O Cruzeiro), mas vibrando com os seriados no Cine Pax (como esquecer O império submarino, para ficar em um só exemplo?). Vibrando igualmente com os filmes de Tarzan, Durango Kid, Hopalong Cassidy e Esther Williams, a minha primeira grande paixão cinematográfica, ao lado de Ava Gardner (quantas e quantas vezes a tive nos meus braços; talvez mais do que o próprio Frank Sinatra).
O cinema de Seu Clóvis, em particular, ocupa um lugar todo especial em meus relembramentos caicoenses (assim como ocupa um lugar especial a lembrança dos gibis vendidos semanalmente por Seu Benedito). De certa maneira, a história dos filmes exibidos pelo Pax nos anos 50 se confunde com a própria história da cidade naquele período, período que viu o surgimento de A Folha, em 1954, que viu - sempre maravilhada - as festas de Sant'Anna e do Rosário, que viu a passagem do Circo Copacabana, do Circo Teatro Show, que viu e ouviu Luiz Gonzaga na Praça da Liberdade (em 1954), que viu uma das partidas da final entre Caicó e Nova Cruz pelo Campeonato do Interior de 58 (Caicó 4x3, depois de fazer 3x0; infelizmente, na finalíssima, em Natal, deu Nova Cruz: 2x1), que viu a grande seca de 58. E que viu filmes como Sansão e Dalila (com Victor Mature e Hedy Lamarr), Tarzan e a mulher-leopardo (com Johnny Weismuller), O ébrio (com Vicente Celestino); Luzes da cidade (com Carlitos), Dois palermas em Oxford (com o Gordo & o Magro), Paraíso proibido (com Joseph Cotten), O barco das ilusões (com Ava Gardner), Joana d'Arc (com Ingrid Bergman), Cristóvão Colombo (com Fredric March), Gilda (com Rita Hayworth e Glenn Ford). E mais: Rashomon (com Toshiro Mifune), Rio Vermelho (com John Wayne e Montgmery Clift), Pandora (com James Mason e Ava Gardner), Laura (de Preminger), O segredo das jóias (de Huston), O drama do deserto (documentário com a marca Disney), A um passo da eternidade (com Burt Lancaster e Deborah Kerr), A nave da revolta (com Humphrey Bogart), Os vencidos (de Antonioni), O rastro da Bruxa Vermelha (com John Wayne), A estrada e Agulha no palheiro (nacionais; o segundo, de Alex Viany), Velhas lendas tchecas (extraordinário filme de animação).
Sansão e Dalila, por exemplo, terminou sendo um acontecimento na cidade. Para começo de conversa, foi lançado em pleno sábado, fato no mínimo incomum (o sábado era reservado para o seriado, com um bangue-bangue ou um policial classe B, mera repetição do programa da quinta-feira); depois, no domingo, inaugurou as sessões matinais. Ao todo, foram seis sessões, em cinco dias. Um recorde absoluto! Até então, um filme de apelo comercial era exibido, no máximo, duas ou três vezes. E Gilda? Para frustração da garotada, o primeiro filme a ser proibido para menores no Pax... Bem, na verdade, ele só permaneceu proibido na "sessão nobre" do domingo; na segunda - aleluia!, aleluia! - já estava liberado para todos nós. A partir daí, passou a ser uma prática mais ou menos rotineira; aos domingos, o filme - qualquer filme, mesmo o mais inocente - era proibido até 18 anos, já às segundas... O seu Clóvis tinha uma "ótima" justificativa para essa estranha censura: "Aos domingos, privilegiamos a família caicoense; nos outros dias, a gandaia". E haja gandaia no velho e querido Pax, o poeira mais amado do país! Pobre daquele que adormecesse em suas sessões... Sofria o diabo, com as piúbas e/ou os palitos de fósforo queimando entre seus dedos. E a vaia, do primeiro ao último minuto, dada ao belo Velhas lendas tchecas, em 1959? Confesso: fiquei indignado.
Depois, a partir de 1960, Caicó passou a ser simples memória, embora memória viva - uma grata memória retrabalhada pelo devaneio e pela emoção. Um novo porto me abrigava: Natal. Veio a consciência diante dos ideais socialistas, veio o aprofundamento em cinema e literatura, vieram novas paixões, novas amizades, novas sensações. Novos alumbramentos. Novos estudos. E veio o Rio de Janeiro, em 1967, depois de conhecê-lo em 1966. E no Rio, o Fluminense em pleno Maraca. E no Rio, a participação no lançamento do poema/processo, a participação na luta política. E no Rio, o primeiro livro publicado. E no Rio, o ingresso - como professor - no Departamento de Comunicação da UFF. E no Rio, duas filhas maravilhosas: Ana Morena e Isadora.
E no Rio, a lembrança de Caicó. O cheiro de Caicó. Os serrotes de Caicó. As águas de Caicó. O calor de Caicó. As mulheres de Caicó. E, como tricolor, em homenagem a alguns caros amigos rubro-negros, direi: Eu sentiria um desgosto profundo se não existisse Caicó no mundo.
13 comentários:
Voltaram as contramemórias!
Teu retorno está fazendo um bem danado, não é verdade?
Forte abraço, meu caro.
Lendo as palavras do amigo
Penso, pois, que benção!
Caicó Trouxe de volta
A poesia que o Rio levou!
Viva Caicó!
Ou será que o Rio trouxe de volta a poesia que a seca levou?
O fato é que há poesia no ar!
Abraços. SF
Texto maravilhoso, um dos melhores que já encontrei no mundo dos blogs. Poesia pura! Parabéns. E Viva Caicó, o Cine Pax e seu Clóvis :)
Moacy,
Só por essa justificativa de Seu Clovis, dà para se dizer que ele devia ser uma figura. Muito diferente do proprietário do cinema da minha cidade. Ah, como é bom recordar as coisas boas do passado. Sim, porque, é óbvio, existem as coisas ruins, mas a nossa memória, como se diz , é seletiva. Um abraço.
Querido (sempre querido) Moacy!
Ah os caicoenses... Reconhece-se um caicoense de longe (mesmo aqueles que apenas se consideram como tal). Acho que uma das grandes diferenças entre o caicoense e o currais-novense é esse sentimento de amor à terra tão forte entre vocês e nem tanto entre nós. Obviamente que há vantagens e desvantagens nisso, até porque algumas pessoas são extremistas quanto a esse amor, criando uma certa rivalidade (até hoje por mim incompreendida) com relação a Currais Novos.
Acredito na importância desse amor à terra e pretendo cultivá-lo em todos os lugares onde estou, em todos os momentos em que me sinto ser humano pertencente a uma trama muito mais complexa do que a nossa vidinha às vezes tão medíocre.
Admiro quem é assim, desse jeitinho que você é, Moacy, apaixonado por essas paragens, devotado a elas e deflagrando sua paixão pelos quatro cantos do mundo, coração sertanejo que, mesmo distante, deixa predominar, na maioria das vezes, esse teu sangue de menino cangaceiro a ecoar pelos ventos e dunas e cactos o teu amor pelo Seridó. Isso é apaixonante!
Adoro você!
Beijão!
Puxa, vendo a lista de filmes assistidos nesse pequeno cinema fico pensando como seria bom que os cinemas tivessem uma programação de filmes "antigos" - na minha cidade (Rio Grande - Rs) tem um pequeno cinema que se arrisca a fazer isso, e sempre tem espectador. Esses tempos eles passaram Pulp Fiction no cinema, passaram também "Sete Homens e Um Destino" e foi um verdadeiro barato.
Abraço!
Eu também sentiria muito desgosto se não existisse Caicó, não teria escrito muita coisa que escrevi em meu blog. Abraços.
Ah, e eu não conheço Caicó... :(
Passando p/ te convidar a passear pelo Blog de 7 Cabeças e ver um poema da Iara, minha convidada da semana.
[http://blogdesete.blogspot.com]
Beijos potiguares! ;)
Caro mestre,
Vejo que o seu lado "antigas ternuras" faz surgir um belo memorialista com texto perfeito, que deixa a todos nós "a beira do gramado". Também fui apaixonado por Esther Williams e morria de raiva do Red Skelton por beijá-la.
Foi ótimo conhecer os tesouros ocultos em seu baú de memórias.
Carpe diem. Aproveite o dia e a vida.
É lindo esse amor à terra onde se nasceu e viveu o tempo do aprendizado maior. E que aprendizado, Moacy! Abraço grande.
Moacy, comovente o teu texto sobre os tempos de juventude e descoberta em Caicó ( " Oh mana deixa eu ir/ Oh mana eu vou só/ Oh mana deixa eu ir/ para o sertão do Caicó" - Milton cantou).
Me fez lembrar da minha Caicó no outro extremo do país - o bairro de Ipanema, em Porton Alegre, onde conheci o cinema (aos domingos as matinês do Cine Ipanema,antecedidas por um apito que se ouvia em todo o bairro; às quartas-feiras em que as mulheres não pagavam - O Dia das Damas -; às sextas-feiras dos filmes para "adultos". Foi aí também que conheci a paixão, o amor perfeito e impossível e o sexo delirante; os homens, suas virtudes e suas canalhices; os homens, suas alegrias e os seus velórios. Permita o plágio: eu sentiria um desgosto profundo de não existisse Ipanema no mundo. Mais do que isso, eu não seria quem sou sem Ipanema e suas esquinas.
Um abraço e obrigado pela boa literatura.
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