sábado, 28 de abril de 2007

Poema/processo
DADÁ PRA CÁ, DADÁ PRA LÁ
Moacy Cirne
[ Projeto inaugural: 1992, in Balaio 431 ]

leia JOYCE como se estivesse lendo KAFKA
veja FELLINI como se estivesse vendo MIZOGUCHI
ouça MOZART como se estivesse ouvindo COLTRANE
use REMBRANDT como se estivesse usando DUCHAMP
leia JOYCE como se estivesse ouvindo COLTRANE
ouça MOZART como se estivesse vendo MIZOGUCHI
veja ZILA MAMEDE como se estivesse usando KAFKA
use REMBRANDT como se estivesse sonhando com BACHELARD
ouça JOYCE como se estivesse ouvindo ANTONIONI
assuma JOSÉ BEZERRA GOMES como se estivesse
como se estivesse
metaplagiando FALVES SILVA
e JOTA MEDEIROS
e AVELINO DE ARAÚJO
e ANCHIETA FERNANDES
e DAILOR VARELA
e JORGE FERNANDES

ao som de PEDRO OSMAR e HERMETO PASCOAL
e CLAUDIO MONTEVERDI


BALAIO PORRETA 1986
nº 2006
Rio, 28 de abril de 2007


A BIBLIOTECA DOS MEUS SONHOS
666 livros indispensáveis (13/111)

Prelúdio e fuga do real, de Luís da Câmara Cascudo. Natal: Fundação José Augusto, 1974, 365p. [] Seria este livro "um estranho no ninho" na obra cascudiana? Seria este título uma simples brincadeira do Mestre Cascudo? Nos dois casos, talvez sim, talvez não. Talvez, talvez: o humor em releituras intensas que revelam a grande erudição do humanista Cascudo. Uma certa bizarrice intelectual poderia soar como provocação; talvez o seja. Uma certa voltagem erudito-literária poderia soar como pedantismo; talvez o seja. Mas o livro, a merecer uma edição mais cuidada, mais planejada, mais enriquecedora, paira sobre todos nós, altivo e inquieto, enigmático e imprevisível. Como disse o agitador cultural pernambucano Jomard Muniz de Britto, depois de classificá-lo de estranho e complexo, aqui, neste particular título, "Por dentro das impossíveis lacanagens, nabucanagens e outras esquisitofrenices", Mestre Cascudo, ímpar como sempre, muito além da etnografia e do folclore, "penetrou de corpo e alma -- e não apenas surdamente como Drummond -- no reino das palavras e dele nunca mais desejou fugir para outras ilhas de documentação ou arquipélagos de vã sabedoria" (cf. Dicionário crítico Câmara Cascudo, de Marcos Silva, org.).
Terceira aquarela do Brasil, de Jomard Muniz de Britto. Recife: Ed. do Autor, 1982, 107p. [] Um subtítulo programático que revela os segredos da pernambucália recifilense: Texto de humor e horror com acessos líricos sob o trópico de pernambucâncer. Já o dissemos em publicações remotas: "A prática intelectual de Jomard Muniz de Britto tem sido, a partir da tropicália, e sempre de forma provocadora, uma intervenção crítica e criativa nos quadros culturais da pernambucanagem. Sua atuação, seja como professor, seja como teórico, seja como autor de super-8 [seja ainda como poeta maldito, acrescentamos agora], é a de um animador cultural". Arauto da contraliteratura, JMB resiste ao tempo e ao vento: a bravura ímpar de uma escridura vivencial. Ou seja, uma escrita vivenciada sob o signo da existencialidade capaz de recifernizar, de forma dura e (im)pura, a deglutinação antropofágica de todas as palavras, de todas as imagens, de todos os sons e de todos os (sub)textos. Como no poema que segue, extraído da pág. 11, com suas marcas da ditadura que nos ameaçava com sangue, suor e porradas:

o brasil não é o meu país: é meu abismo.
o terreiro de minhas, nossas contradicções.
é meu câncer coletivo
e a força luminosa da escuridão.
é nosso discurso interrompido
sufocado e
arrebentador
.

Ou mais adiante, à pág. 61:
o brasil não é o meu país: é nossa esquizofrenia.
é o medo de sempre
doendo e até anestesiando.
é o gozo de sempre
roçando e até nos enganando.
é o carnaval no futebol das religiões.
é o terror de outrora
ainda agora despedaçando
mentes e culhões
.
(...)
Livro geral, de Carlos Pena Filho. Rio de Janeiro: Livraria São José, 1959, 123p. [] Reunião de sua obra publicada até então: O tempo da busca, Memórias do boi Serapião e A vertigem lúcida, além de sua produção inédita -- Nodesterro, Cinco aparições sem data e Guia prático da Cidade de Recife (que contém os famosos versos: "Porisso no bar Savoy, / o refrão é sempre assim: / São trinta copos de chopp, / são trinta homens sentados, / trezentos desejos presos, / trinta mil sonhos frustrados". (Nunca mais estive no Savoy; será que ele ainda existe? Será que continua o mesmo?). A verdade é que o pernambucano Carlos Pena Filho (1929-1960), pouco conhecido no Sul Maravilha, é um dos maiores poetas líricos do país em todos os tempos. Sobre ele nos disse outro grande poeta da pernambucália tropical: "Escrevo esse nome -- Carlos Pena Filho -- e estou certo de que o inscrevo na eternidade. Pois me parece impossível que as presentes e as futuras gerações esqueçam o poeta encantador, tão cedo e tão tragicamente desaparecido" (Manuel Bandeira). Uma poesia (talvez) oceânica, como o mar de Olinda e Recife. Eis um exemplo de sua poeticidade:

Deu-lhe a mais limpa manhã
que o tempo ousara inventar.
Deu-lhe até a palavra lã,
e mais não podia dar.

Deu-lhe o azul que o céu possuía
deu-lhe o verde da ramagem,
deu-lhe o sol do meio dia
e uma colina selvagem.

Deu-lhe a lembrança passada
e a que ainda estava por vir,
deu-lhe a bruma dissipada
que conseguira reunir.

Deu-lhe o exato momento
em que uma rosa floriu
nascida do próprio vento;
ela ainda mais exigiu.

Deu-lhe uns restos de luar
e um amanhecer violento
que ardia dentro do mar.

Deu-lhe o frio esquecimento
e mais não podia dar.

(As dádivas do amante, p.75).
Dom Casmurro [1899], de Machado de Assis. Rio de Janeiro: INL / MEC, 1969, 255p. [Livro adquirido no Sebo Vermelho, em Natal.] Já se disse tudo sobre Machado? Talvez sim, talvez sim. Já se disse tudo sobre Dom Casmurro? Talvez, talvez. E sobre Capitu, tudo já se disse? Talvez não, talvez não. Mas o livro, mais de 100 anos depois de lançado, continua vigoroso, continua sublime, continua envolvente, literariamente envolvente. E esta não é uma edição qualquer; é a edição crítico-filológica da Comissão Machado de Assis do Instituto Nacional do Livro. Que revela a seguinte curiosidade: "Pelo que a pesquisa bibliográfica pode até agora assinalar, não provocou o livro uma grande mobilização da crítica. Entretanto, em poucos dias, esgotaram-se dois mil exemplares, e Dom Casmurro é, certamente, até hoje, dos romances da segunda fase de Machado de Assis, o que tem tido maior receptividade popular" (p.15). Durante muito tempo, em plena fase natalense, na primeira metade dos anos 60, preferíamos Memórias póstumas de Brás Cubas; hoje, relido os dois, cada vez mais a história de Bento, Capitu e Escobar domina as emoções literárias que fazem da nossa Biblioteca uma Biblioteca de prazeres incontáveis. Simbólica e misteriosamente incontáveis. Somente numa imaginária e encantatória São Saruê poderemos mapeá-la em intermináveis auroras marcadas pelo lirismo e pela embriaguez da própria Literatura.
As cidades invisíveis [1972], de Italo Calvino. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, 160p. [] Quem não gostaria de conhecer uma cidade chamada Valdrada, à beira de um lago mágico? E Zobeide, com sua luz e suas ruas mais brancas do que o mais branco azul do mar profundo? Zenóbia, com suas casas de bambu e zinco, seria uma cidade ou o leite da mulher amada? Nada como uma faceira Maurília, com suas deusas fantasiadas de bruxas enlouquecidas pelas tardes ensolaradas de janeiro, fevereiro e abril. E o que dizer da bela Raíssa, da bela Berenice, da bela Teodora, cidades que se ocultam entre pássaros e arvoredos mágico-tropicais? Eutrópia (e seu deus dos volúveis) tem algo de trágico; Sofrônia (e seus frontões de mármore), algo de melancólico. Como passear pelas ruas aterradas de Argia sem conhecer os textos ficcionais de Camus, Kafka, Nei Leandro de Castro e Moacir C. Lopes? Como olhar para a solene Pirra sem deixar de lado as cidades do meu Seridó? Um lugar chamado Ândria não pode ser um lugar qualquer: seus mistérios insondáveis escapam à compreensão humana. E a aquática Esmeraldina não seria uma cidade dos mil e um sonhos transfigurados pelas dunas vermelhas de Natal, por onde não passaram rebanhos e tristes nuvens, nuvens tristes? Há também, neste livro de Calvino marcado pela surpresa e pela engenhosidade, uma Olinda, sim, uma Olinda invisível para a nossa imaginação, com suas velhas muralhas de alfenim. Mas que Olinda é esta, sem frevo e sem maracatu? José Cláudio, Celso Marconi e Alceu Valença, respondam-me, por favor: que Olinda é esta, tão longe do Recife, tão longe de suas igrejas seculares? Deve ter sido a água do Poço de Santana que fez o escritor italiano delirar ao criar suas cidades invisíveis. Sim, é verdade, é verdade: este livro foi concebido em Caicó, quando de sua temporada seridoense nos idos de 1970-71. Só assim se explica como foi possível criar tantas cidades em uma só, pois, no fundo, no fundo, Calvino estava pensando mesmo era na múltipla e encantatória Caicó quando o escreveu de forma tão exageradamente poética. Os historiadores Olavo de Medeiros Filho e Muirakytan Macedo, além do médico Oberdan Damásio, caicoenses cabas da peste, confirmaram-me o fato. Afinal, bem antes, assegura o citado Muirakytan Macedo, Joyce só escrevera Dublinenses depois de ter passado uns dias na antiga Vila Nova do Príncipe, no início do século passado, hospedado no sobrado do Padre Brito Guerra. Ao que consta, segundo as crônicas da época, teria ficado maravilhado com rapadura, queijo de coalho e canjica. E só dormia em rede bordada com os crepúsculos barrocos da região.
Correspondência
SOBRE ITALO CALVINO EM CAICÓ


Considerando que esta obra já apareceu na série Livros para São Saruê, quando fizemos referência à presença de Italo Calvino em pleno Seridó, republicamos também, por sua atualidade, a mensagem do historiador caicoense Muirakytan Macedo, um valente sertanejo das lutas acadêmicas:

Olá, Moacy,
Ando lendo o
Balaio e me deparo com o Calvino em Caicó. Verdade da mais pura. Ultimamente pesquisando na Biblioteca Olegário Vale encontrei um texto manuscrito assinado com a sigla I.C. Metade do texto é escrito em espanhol e a outra em italiano. O autor, que imagino ser o ítalo-cubano citado, rascunhava sobre a descoberta que tinha feito de uma aldeia sob uma imensa pedra no Poço de Santana. O acesso a esta aldeia foi relatado a ele por um apressado mocó que olhava um relógio esquisito e dizia a todo momento que estava atrasado. Depois de tomar uns chás de jurema nosso autor encolheu e se esguirou por uma loca que deu nessa aldeia liliputiana. Lá ele encontrou Marco Polo em pessoa; claro, bem velhinho e mentiroso como o quê. O resto da história é de domínio público, como você já sabe. A aldeia existe sim. Mas eu ainda não tive condições de entrar nela. É que sou alérgico a chá de jurema e, convenhamos, estou muito acima do peso para ser tolerado nestas experiências de encolhimento.
Abração saudoso
Muirakytan

6 comentários:

o refúgio disse...

BRAVO!!!

Moacy, rapaz, O Balaio de hoje tá mais do que arretado! Puxa! "Dadá pra cá Dadá pra lá" tá Maravilha, Dadá maravlha!

Sei que é vergonhoso dizer isso mas não conhecia a poesia de Jomar Muniz, muito obrigada por me apresentá-la.

"Dom Casmuro", adoro, ou melhor, adoro Machado de Assis.

Esse poema de Carlos Pena Filho é lindo.

E Cidades Invisíveis... puxa, cara, já li, claro, sonhei e amei. Poesia pura!

Beijos pernambucanalados :)

Ah sim, O bar Savoy ainda existe mas não é mais o mesmo, infelizmente, ele não ficou imune a decadência do centro do Recife.

Mais beijos.

Anônimo disse...

Meu caro Moacy,
Hoje o Balaio tá porreta mesmo! Fiquei aqui um tempão me deliciando com tuas (felizes) escolhas. Fui, voltei, estou aqui outra vez.
Obrigado, mestre.
Bom final de semana e um forte abraço.

Francisco Sobreira disse...

Esses caicoenses... Mas, caro amigo, que bom você hoje preferir "Dom Casmurro" a "Memórias Póstumas de Brás Cubas". Ambos são obras-primas, mas sempre gostei mais do primeiro. Li há alguns meses "Prelúdio e Fuga do Real". Gostei, é claro. Gosto muito do estilo de Cascudo. Agora se pudesse fazer uma pequena ressalva é que o Mestre não colocou nenhum brasileiro entre os seus interlocutores. E há tantos importantes, que pelo menos uns 2 ou 3 poderiam estar ali. Um abraço.

Anônimo disse...

Fui do topo até o pé da barra de rolagem das tuas maravilhosas postagens, e adorei tudo que li aqui, e dei boas gargalhas. Um abraço seridoense!

Anônimo disse...

Grande Moacy... Vi hoje Morangos Silvestres de Ingmar Bergman... Grande filme! Até postei um breve comentário no meu blog. Veja lá! Rapaz, como gosto dos clássicos. Filmes em P&B, principalmente. Pena que, raramente, tenho acesso, pois nas locadoras de Caicó não acho nem ET - O Extraterrestre. Morangos Silvestres aluguei em Natal. Grande abraço!

Marconi Leal disse...

Dois pernambucanos na lista, hein? Bom.