sexta-feira, 4 de abril de 2008


O Açude Boqueirão, em Parelhas,
o maior do Seridó,
também já está sangrando.

Foto:
Hugo Macedo
[ in Grande Ponto ]


BALAIO PORRETA 1986
n° 2274
Rio, 4 de abril de 2008


O RIO & O BARREIRO

[ in Sopão do Tião, de Brasília/Parelhas ]

Entre a imensidão do Itans e a humildade do barreiro, corria a perenidade provisória do rio. Era ele que fazia a nossa festa, que nos alegrava a infância quando dele se dizia que "o rio chegou com água". Com o reforço linguístico que o tempo subtraiu do discurso sertanejo, "de barreira a barreira". Quando a temporada de chuvas se estabelecia e o rio perenizava-se, instituições naturais irmãs do açude, do barreiro e do rio vinham se somar, no leito desse ou em torno dele, à galeria de diversões que tinham data para acabar. Era o poço onde se atirava o valentão da hora, era o redemoinho temido, era a correnteza translúcida, eram as piabas inquietas e presas fáceis dos mesmos meninos, como era a brancura fina da areia da nossa praia interior e o domingo predestinado a fazer moradia na memória. O rio era tudo isso e antes de tudo era um muxoxo que todas as crianças ribeirinhas dirigiam às suas mães: o "snif, snif", aquele fungado fingido do nariz para provar que não se estava gripado e, portanto, se estava sim em plenas condições de ser liberado para "tomar banho no rio", essa outra expressão que o português falado guarda em relicários mudos.

Se o Itans valia por um oceano, o barreiro era o pingo dele a que tínhamos direito. Na medida em que as estatísticas das chuvas passaram a compor uma linha cada vez mais descendente, essa pequena instituição da natureza do mundo rural foi sumindo do mapa. Tanto que a própria palavra - barreiro, que é bem auto-explicativa - também caiu em desuso. Alguém ainda sabe o que é um barreiro hoje em dia? Era uma pequena lagoa, geralmente situada no terreno dos fundos das casas dos sítios, em pés-de-serra ou de serrotes, com úma água bem barrenta, naquele tom amarelo-arenoso. Não chegava a ser um açude, não tinha estatura para tanto, mas devia ter sua utilidade. O que acabei de descrever, por sinal, é o barreiro que havia nos fundos da casa do sítio onde moravam meus avós maternos, na Timbaúba, em Parelhas. O barreiro - ao menos o que me ficou daquele barreiro em particular - era querido como se quer bem a uma pessoa da família. Quando se chegava ao sítio, corria-se logo para vê-lo, como se uma promessa de inverno farto estivesse contida na sua pouca e turva água.


A BIBLIOTECA DOS MEUS SONHOS
Livros fundamentais da literatura potiguar

Sertões do Seridó, de Oswaldo Lamartine. Brasília, 1980, 232p. [] Reunião de cinco pequenas obras de um dos maiores estilistas da literatura nordestina, reveladas amorosamente pela pesquisa etnográfica do Autor: Açudes dos sertões do Seridó (1978), Conservação de alimentos nos sertões do Seridó (1965), Algumas abelhas dos sertões (1964), ABC da pescaria de açudes no Seridó (1961) e A caça nos sertões do Seridó (1961). Por vários e vários motivos, um livro luminoso e iluminado, como o cheiro da terra molhada depois das primeiras chuvas de um inverno embriagador, quando os rios, de barreira a barreira, nutrem o chão amado com esperança e vigor. Veja-se o seu estilo, poeticamente cristalino: "Espia-se a água se derramando líquida e horizontal pela terra adentro a se perder de vista. As represas esgueiram-se em margens contorcidas e embastadas onde touceiras de capim de planta ou o mandante de hastes arroxeadas debruçam-se na lodosa lama. O verde das vazantes emoldura o açude no cinzento dos chãos. Do silêncio dos descampados vem o marulhar das marolas que morrem nos rasos. ... O rio, estancado em açude, continua depois, em verde sinuoso de capinzais, copas de coqueiros ou canaviais penteados pelo vento" (p.23).

5 comentários:

Sebastião Vicente disse...

Moacy, rapaz, obrigado pela notícia (fiquei sabendo da sangria do Boqueirão pelo seu comentário) e pela surpresa da reprodução dos textos. Vamos comemorar, ainda que de longe.

Vais disse...

Olá Moacy,
que maravilha! é o líquido que traz vida, linda, linda a fotografia.
Abração

Francisco Sobreira disse...

Caro Moacy,
Bem escrito esse texto de Tião, em que ele, homem-feito, volta à infância, por ocasião de um ocorrido no presente. Um abraço.

Jeanne Araujo disse...

O sertão já virou mar Moacir. De Acari a Caicó, por todos os recantos seridoenses,todos os pequenos cursos de rios até os maiores açudes escorrendo alegrias, sangrando clorolíqüidos.
Vou ao meu sertão tomar banho de chuva!

Maria Maria disse...

Moacy, que maravilha é a nossa terra!!!! Todos os açudes sangram e os poetas compoem versos de água e de amor. Beijos, Maria Maria