Passion, de Jean-Luc Godard,
lançado em 1982,
o ano de
O desespero de Veronika Voss (Fassbinder)
BALAIO PORRETA 1986
n° 2373
Natal, 19 de julho de 2008
Tenho uma queda pela fraquezas humanas; de que outro modo continuaríamos rindo (e há que seguir rindo) num mundo
tão árduo como o nosso?
(Stephen Jay Gould. O milênio em questão, 1997)
Repeteco
PASSION, DE GODARD: MEMÓRIAS DE UM CINÉFILO
[ in Balaio, de 10 de julho de 2004 ]
Todos sabem da minha paixão pelo cinema de Godard; uma paixão antiga, iniciada em Natal, em 1962 (com Acossado, de 1959), e que vivenciara os anos febris da Geração Paissandu (1966-1974), já no Rio. Uma paixão que se renova a cada novo filme ou a cada nova revisão. E como sou fiel às minhas paixões e às minhas coerências, continuo bastante fiel ao cinema de Jean-Luc Godard. Como ao cinema de Antonioni, de Bergman, de Welles, de Renoir, de Visconti...
E quarta-feira, no Espação 1, na Voluntários da Pátria, estarei revendo uma de suas obras mais sensíveis e estimulantes: Passion, de 1982. Jacques Aumont, no livro O olho interminável [cinema e pintura], publicado no Brasil pela Cosac & Naify, em belo estudo, a partir desse filme, afirmaria que Godard é "O único a conhecer a solidão do pintor, o último, talvez, a acreditar ainda nos segredos da invenção criadora" (p.237). Talvez seja um exagero: o atual cinema de Alexandr Sokúrov, por exemplo, também aposta nos segredos da mais pura criação.
Mas voltemos ao que interessa. Eu disse: estarei revendo, mas seria melhor dizer: estarei vendo. Deixe-me explicar: quando o vi, em setembro de 1986, logo após o surgimento do Balaio, um pouco antes do nascimento de minha primeira filha (Ana Morena), não pude senti-lo em toda a sua plenitude. Em primeiro lugar, a exibição se deu num telão de vídeo; em segundo lugar, sem as cores originais. (Em terceiro lugar, durante quatro ou cinco minutos perdi a concentração no filme. Mas isso eu não poderia adivinhar que iria acontecer.) Afinal, Godard é Godard, e eu estava ali, num Vídeo-Clube Bar, numa rua escondida de Botafogo, para ver o inédito Passion.
A sessão fora marcada para as 22h. Às 21:30, mais ou menos, eu já me encontrava na sala, sozinho numa mesa, tomando a minha primeira cerveja da noite. Éramos poucos; dez ou 12 clientes, isto é, espectadores, além dos proprietários do local e de uma garçonete. Na platéia, um conhecido meu: o jornalista Mauro Costa. Mas eu estava ali para ver Godard e não para um papo em mesa de bar.
Tomava a segunda cerveja quando o filme começou a ser apresentado. Como sempre, a emoção me dominava. Decorridos cerca de 40 minutos, de um total de 87, entraram na espaçosa sala quatro sujeitos, que se dividiram em duas mesas. Dois sentaram-se próximos. Ouvi claramente um deles observar para o seu colega: "Cara, vire-se para a tela, estão exibindo um filme". Não tive mais a menor dúvida: eram assaltantes.
Durante alguns minutos perdi a concentração no filme: sair ou não sair. Percebera que Mauro Costa já o fizera, discretamente, depois de pagar a conta e afirmar num tom adequado para a ocasião: "Puxa, que filme chato. Vou continuar bebendo em outro lugar". Eu poderia fazer o mesmo, claro. Decerto, não seria incomodado. Seria compreensível que o fizesse, mesmo sendo a primeira vez que eu abandonaria pela metade um filme de cineasta daquele porte criativo.
Mas Godard era Godard, e o filme estava me sensibilizando. Pensei, então: "Só espero que eles não interrompam a sessão para nos assaltarem. Seria o fim da picada; esperei longos quatro anos pra ver esse Godard". Bom, se não foi exatamente isso que me veio à mente, foi algo parecido. Comecei a torcer para que eles também estivessem gostando de Passion; assim, talvez não interrompessem a apresentação. Mas, diabos, a cópia nem legendas tinha! O filme continuava, continuava, e voltei a me concentrar nas imagens de Godard.
Finda a sessão, quando já me preparava para pagar a conta, os quatro anunciaram o assalto. Um deles, bastante nervoso, por sinal o que ficara de costas para o telão, tomou conta do nosso grupo, recuado para um canto da sala. Enquanto isso, os outros três levavam todo o equipamenrto de vídeo e mais a fita de Godard (na verdade, pertencia ao meu amigo cineasta Luiz Rosemberg Filho, que a trouxera de Paris). O cara que ficou nos encurralando, com uma arma na mão, obrigou-nos a jogar no chão toda a nossa (pouca) grana, mais relógios e outros pertences. E ainda implicou comigo, esfregando o seu revólver no meu rosto: "Barbudo, você está escondendo a grana, vou te apagar, vou te apagar". E eu, aparentando calma: "Quequiéisso, cara, tô maluco pra fazer uma coisa dessas?". Realmente, não estava escondendo nada.
Mas o pior acontecia ao meu lado: a garçonete, agachada, com as mãos encobrindo o rosto, chorava como uma desesperada condenada à morte. Alguns de nós tentavam acalmá-la. Inutilmente. Ainda bem que o sujeito, muito nervoso e provavelmente drogado, não percebeu nada. Os outros três, "atarefados", menos ainda. Foram cerca de 20 minutos que pareciam não ter fim. Depois ainda nos ameaçaram: "Esperem meia-hora antes de irem embora; estaremos na esquina e mataremos o primeiro que tentar sair". Jogo de cena, evidentemente.
Os proprietários, então, serviram uma dose de uísque pra todos nós. E, só então, ficamos sabendo o motivo do choro desenfreado da garçonete: o assaltante que nos ameaçara diretamente morava em seu edifício. Naquele mesmo dia, tomaram o elevador juntos, para andares diferentes. Por sorte dela, ele não a reconhecera. Alguns a aconselhavam a não contar nada para os donos do vídeo-clube, e muito menos para a polícia; outros, que mudasse imediatamente de endereço. Na dúvida, fiquei pensando na beleza do filme de Godard. Recolhi-me ao silêncio e ao uísque.
Na próxima quarta, quase 18 anos depois, estarei revendo Passion, no mesmo bairro, quase na mesma rua. Ou melhor: estarei vendo Passion. Não mais numa cópia de vídeo. E sem assaltantes por perto, assim espero.
PASSION, DE GODARD: MEMÓRIAS DE UM CINÉFILO
[ in Balaio, de 10 de julho de 2004 ]
Todos sabem da minha paixão pelo cinema de Godard; uma paixão antiga, iniciada em Natal, em 1962 (com Acossado, de 1959), e que vivenciara os anos febris da Geração Paissandu (1966-1974), já no Rio. Uma paixão que se renova a cada novo filme ou a cada nova revisão. E como sou fiel às minhas paixões e às minhas coerências, continuo bastante fiel ao cinema de Jean-Luc Godard. Como ao cinema de Antonioni, de Bergman, de Welles, de Renoir, de Visconti...
E quarta-feira, no Espação 1, na Voluntários da Pátria, estarei revendo uma de suas obras mais sensíveis e estimulantes: Passion, de 1982. Jacques Aumont, no livro O olho interminável [cinema e pintura], publicado no Brasil pela Cosac & Naify, em belo estudo, a partir desse filme, afirmaria que Godard é "O único a conhecer a solidão do pintor, o último, talvez, a acreditar ainda nos segredos da invenção criadora" (p.237). Talvez seja um exagero: o atual cinema de Alexandr Sokúrov, por exemplo, também aposta nos segredos da mais pura criação.
Mas voltemos ao que interessa. Eu disse: estarei revendo, mas seria melhor dizer: estarei vendo. Deixe-me explicar: quando o vi, em setembro de 1986, logo após o surgimento do Balaio, um pouco antes do nascimento de minha primeira filha (Ana Morena), não pude senti-lo em toda a sua plenitude. Em primeiro lugar, a exibição se deu num telão de vídeo; em segundo lugar, sem as cores originais. (Em terceiro lugar, durante quatro ou cinco minutos perdi a concentração no filme. Mas isso eu não poderia adivinhar que iria acontecer.) Afinal, Godard é Godard, e eu estava ali, num Vídeo-Clube Bar, numa rua escondida de Botafogo, para ver o inédito Passion.
A sessão fora marcada para as 22h. Às 21:30, mais ou menos, eu já me encontrava na sala, sozinho numa mesa, tomando a minha primeira cerveja da noite. Éramos poucos; dez ou 12 clientes, isto é, espectadores, além dos proprietários do local e de uma garçonete. Na platéia, um conhecido meu: o jornalista Mauro Costa. Mas eu estava ali para ver Godard e não para um papo em mesa de bar.
Tomava a segunda cerveja quando o filme começou a ser apresentado. Como sempre, a emoção me dominava. Decorridos cerca de 40 minutos, de um total de 87, entraram na espaçosa sala quatro sujeitos, que se dividiram em duas mesas. Dois sentaram-se próximos. Ouvi claramente um deles observar para o seu colega: "Cara, vire-se para a tela, estão exibindo um filme". Não tive mais a menor dúvida: eram assaltantes.
Durante alguns minutos perdi a concentração no filme: sair ou não sair. Percebera que Mauro Costa já o fizera, discretamente, depois de pagar a conta e afirmar num tom adequado para a ocasião: "Puxa, que filme chato. Vou continuar bebendo em outro lugar". Eu poderia fazer o mesmo, claro. Decerto, não seria incomodado. Seria compreensível que o fizesse, mesmo sendo a primeira vez que eu abandonaria pela metade um filme de cineasta daquele porte criativo.
Mas Godard era Godard, e o filme estava me sensibilizando. Pensei, então: "Só espero que eles não interrompam a sessão para nos assaltarem. Seria o fim da picada; esperei longos quatro anos pra ver esse Godard". Bom, se não foi exatamente isso que me veio à mente, foi algo parecido. Comecei a torcer para que eles também estivessem gostando de Passion; assim, talvez não interrompessem a apresentação. Mas, diabos, a cópia nem legendas tinha! O filme continuava, continuava, e voltei a me concentrar nas imagens de Godard.
Finda a sessão, quando já me preparava para pagar a conta, os quatro anunciaram o assalto. Um deles, bastante nervoso, por sinal o que ficara de costas para o telão, tomou conta do nosso grupo, recuado para um canto da sala. Enquanto isso, os outros três levavam todo o equipamenrto de vídeo e mais a fita de Godard (na verdade, pertencia ao meu amigo cineasta Luiz Rosemberg Filho, que a trouxera de Paris). O cara que ficou nos encurralando, com uma arma na mão, obrigou-nos a jogar no chão toda a nossa (pouca) grana, mais relógios e outros pertences. E ainda implicou comigo, esfregando o seu revólver no meu rosto: "Barbudo, você está escondendo a grana, vou te apagar, vou te apagar". E eu, aparentando calma: "Quequiéisso, cara, tô maluco pra fazer uma coisa dessas?". Realmente, não estava escondendo nada.
Mas o pior acontecia ao meu lado: a garçonete, agachada, com as mãos encobrindo o rosto, chorava como uma desesperada condenada à morte. Alguns de nós tentavam acalmá-la. Inutilmente. Ainda bem que o sujeito, muito nervoso e provavelmente drogado, não percebeu nada. Os outros três, "atarefados", menos ainda. Foram cerca de 20 minutos que pareciam não ter fim. Depois ainda nos ameaçaram: "Esperem meia-hora antes de irem embora; estaremos na esquina e mataremos o primeiro que tentar sair". Jogo de cena, evidentemente.
Os proprietários, então, serviram uma dose de uísque pra todos nós. E, só então, ficamos sabendo o motivo do choro desenfreado da garçonete: o assaltante que nos ameaçara diretamente morava em seu edifício. Naquele mesmo dia, tomaram o elevador juntos, para andares diferentes. Por sorte dela, ele não a reconhecera. Alguns a aconselhavam a não contar nada para os donos do vídeo-clube, e muito menos para a polícia; outros, que mudasse imediatamente de endereço. Na dúvida, fiquei pensando na beleza do filme de Godard. Recolhi-me ao silêncio e ao uísque.
Na próxima quarta, quase 18 anos depois, estarei revendo Passion, no mesmo bairro, quase na mesma rua. Ou melhor: estarei vendo Passion. Não mais numa cópia de vídeo. E sem assaltantes por perto, assim espero.
[ Texto a ser publicado no meu próximo livro:
A cinemateca imaginária, edição do Sebo Vermelho ]
A cinemateca imaginária, edição do Sebo Vermelho ]
7 comentários:
Caramba Moacy! Começar o dia (o ponteiro ainda não anunciou as 8h por aqui) lendo Stephen Jay Gould e depois (re)vivendo em imagens tão bem contadas essa sua aventura para ver Passion, só posso já dar o dia como ganho. E torcer para que seu (re)encontro com Godard, dessa vez, não tenha nenhum segundo de desconcentração. Um cheiro no olho, você está lá no Bicho. Sheylinha
que imagem linda. esse eu não vi. eu vi poucos filmes do godard. beijos, pedrita
Esse filme também é uma paixão pessoal minha. Vi-o no único cinema Estação que havia em São Paulo (fechou, infelizmente) quando estava começando a cortejar a mulher que hoje mora comigo. Eu, que não sabia a que ponto ela gostava de cinema autoral, fiquei felicíssimo ao verificar que ela ficou extasiada. Até hoje imitamos uma cena em que Isabelle Huppert, com o ar mais frio do mundo, morde a mão de Michel Piccoli.
Aproveite a sessão!
Brother,
Publiquei um poema seu no meu blog.
Meu livro está sendo trabalhando, a gestação tá quase para ser parido. Quando tiver pronto te aviso.
Valeu sua luz, sua força de sempre.
Seu poema tá iluminando meu blog.
Beijabraços.
Muita luz e saúde.
Que história!, Moacy. Isso é que é paixão por um cineasta.
***
Lembrei do meu primeiro assalto, também num bar. O ex-governador Olívio Dutra, então presidente do Sindicato dos Bancários, estava junto e ostentava uma grossa aliança num dos dedos da mão esquerda. Diante da sua relutância em entregar o objeto - "não quer sair, companheiro", argumentou - o assaltante radicalizou: "vou cortar o dedo". Milagre: a aliança saiu rapidinho. Já eu perdi uns trocados e o relógio Citizen que ganhei do pai aos 18 anos.
***
O aperitivo deu água na boca. Avisa quando sair o livro.
Um abraço.
Que lástima, e que deprimente essa junção. definitivamente a arte e a violência, não deveriam ocupar o mesmo lugar. Bjos tristes
suzanathompson.zip.net;
Adorei esse seu texto... que situação mais doida! Gosto muito do seu blog, mas nunca deixo domentários, gosto apenas de ler e observar meio de longe... Mas hoje resolvi deixar esse recado. Beijos!
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