Mapa do Rio de de Janeiro,
elaborado por volta de 1700
BALAIO PORRETA 1986
n° 2426
Rio, 16 de setembro de 2008
Os livros de Cascudo não se esfumam no ar, mesmo à primeira leitura, como tantos outros. Alguma coisa ficará para sempre.
(Deífilo GURGEL, in Cascudo - Guardião das nossas tradições, 2004)
CÂMARA CASCUDO - UMA BREVE LEITURA (1)
Moacy Cirne
1.
Revisitar Natal é revisitar o universo de Luís da Câmara Cascudo¹. Poucos escritores, na história da vida literária brasileira, e mesmo mundial, tiveram uma relação amorosa e intelectual tão forte com a sua cidade quanto o autor de Vaqueiros e cantadores (1939). Natal é Cascudo. Cascudo é Natal.
Seu fascínio - como escritor e figura humana - é inegável. Suas qualidades como folclorista e etnógrafo (leia-se também: como pesquisador incurável) são mais do que admiráveis². Louve-se de igual modo a sua vertente criativa. Haja vista Canto de muro (1959) e Prelúdio e fuga do real (1974).
Muitos são os livros importantes³ do Mestre Cascudo, além dos três citados: História da alimentação no Brasil (1967-68) e História dos nossos gestos (1976) são dois deles. Outros e outros poderiam ser citados, claro. Aqui, aliás, temos o melhor do Câmara Cascudo historiador.
Curiosamente, a parte menos significativa de sua obra - se deixarmos de lado o provinciano e apenas razoável Alma patrícia (1921) - é a que diz respeito ao historiador oficial. Não é preciso ser um estudioso da matéria para perceber as fragilidades críticas de sua abordagem oficialesca.
Mas por que destacar, neste momento, justamente o Cascudo menos interessante? O menos expressivo?
2.
Por que destacar, neste momento, o Cascudo menos interessante, o menos expressivo? Ora, vasto é o seu mundo, vasta é a sua cultura. E embora ele não tenha nenhum livro com a importância sociológico-literária, por exemplo, de Casa grande & senzala (1933), sua obra, como um "todo cultural", é mais estimulante do que a de Gilberto Freyre.
Por que então se voltar para o historiador factual que se encontra nas suas "histórias oficiais"? Basicamente, por dois motivos pontuais: 1. apontar o verdadeiro Cascudo Historiador, que se constrói sobretudo através de suas pesquisas etnográficas e de seu mapeamento dos "pequenos simbolismos"; 2. questionar o oba-oba dos cascudólogos natalenses.
Há um terceiro motivo, derivado do segundo: não se prender às leituras fáceis (poderíamos dizer: às leituras inertes, cf. Gaston Bachelard) daqueles que endeusam o autor do Dicionário do folclore brasileiro (1954). Decerto, particularmente no meio universitário, temos estudiosos da maior categoria. É o caso de um Humberto Hermenegildo de Araújo.
Uma pergunta se impõe, deve-se explicitar: o que era a História para Cascudo? Por certo, não era só a história de fatos & acontecimentos construídos historicamente pelos donos do poder. E se é verdade que, muitas vezes, Cascudo a eles se sujeitou, também é verdade que os caminhos & veredas da(s) cultura(s) popular(es) lhe deixaram profundas marcas.
E são essas marcas que alimentam sua produção folclórica, seu saber etnográfico, seu conhecimento literário, e mesmo sua boemia intelectual. Como Bachelard, Cascudo era um grande leitor de poesia; como em Bachelard, o espírito crítico de Cascudo em relação à poesia, por ser demasiadamente generoso, perdia-se, aqui-acolá, no elogio equivocado.
Termina aqui, acrescente-se, a relação Cascudo/Bachelard. Mas não nos esqueçamos: o contato cascudiano com a realidade das manifestações populares - seus mitos, seus emblemas, suas crendices - e com o mundo pluridimensional da poesia (ele mesmo, quando jovem, poeta) fazem o escritor Luís da Câmara Cascudo: sua grandeza, sua brasilidade.
Mas por que, afinal, as suas obras menos enriquecedoras também despertam a nossa atenção? O nosso olhar crítico?
[ Continua na próxima semana ]
Notas:
¹ Assim como revisitar o Seridó é revisitar o mundo de Oswaldo Lamartine.
² Uma boa introdução ao seu universo literário é o livro Dicionário crítico Câmara Cascudo, organizado por Marcos Silva (São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, Fapesp ; Natal: Fund. José Augusto, EDUFRN, 2003, 332p.)
³ Cascudo escreveu, a partir de 1921, aproximadamente 150 livros, dos quais pelo menos uns 40 são relevantes.
Moacy Cirne
1.
Revisitar Natal é revisitar o universo de Luís da Câmara Cascudo¹. Poucos escritores, na história da vida literária brasileira, e mesmo mundial, tiveram uma relação amorosa e intelectual tão forte com a sua cidade quanto o autor de Vaqueiros e cantadores (1939). Natal é Cascudo. Cascudo é Natal.
Seu fascínio - como escritor e figura humana - é inegável. Suas qualidades como folclorista e etnógrafo (leia-se também: como pesquisador incurável) são mais do que admiráveis². Louve-se de igual modo a sua vertente criativa. Haja vista Canto de muro (1959) e Prelúdio e fuga do real (1974).
Muitos são os livros importantes³ do Mestre Cascudo, além dos três citados: História da alimentação no Brasil (1967-68) e História dos nossos gestos (1976) são dois deles. Outros e outros poderiam ser citados, claro. Aqui, aliás, temos o melhor do Câmara Cascudo historiador.
Curiosamente, a parte menos significativa de sua obra - se deixarmos de lado o provinciano e apenas razoável Alma patrícia (1921) - é a que diz respeito ao historiador oficial. Não é preciso ser um estudioso da matéria para perceber as fragilidades críticas de sua abordagem oficialesca.
Mas por que destacar, neste momento, justamente o Cascudo menos interessante? O menos expressivo?
2.
Por que destacar, neste momento, o Cascudo menos interessante, o menos expressivo? Ora, vasto é o seu mundo, vasta é a sua cultura. E embora ele não tenha nenhum livro com a importância sociológico-literária, por exemplo, de Casa grande & senzala (1933), sua obra, como um "todo cultural", é mais estimulante do que a de Gilberto Freyre.
Por que então se voltar para o historiador factual que se encontra nas suas "histórias oficiais"? Basicamente, por dois motivos pontuais: 1. apontar o verdadeiro Cascudo Historiador, que se constrói sobretudo através de suas pesquisas etnográficas e de seu mapeamento dos "pequenos simbolismos"; 2. questionar o oba-oba dos cascudólogos natalenses.
Há um terceiro motivo, derivado do segundo: não se prender às leituras fáceis (poderíamos dizer: às leituras inertes, cf. Gaston Bachelard) daqueles que endeusam o autor do Dicionário do folclore brasileiro (1954). Decerto, particularmente no meio universitário, temos estudiosos da maior categoria. É o caso de um Humberto Hermenegildo de Araújo.
Uma pergunta se impõe, deve-se explicitar: o que era a História para Cascudo? Por certo, não era só a história de fatos & acontecimentos construídos historicamente pelos donos do poder. E se é verdade que, muitas vezes, Cascudo a eles se sujeitou, também é verdade que os caminhos & veredas da(s) cultura(s) popular(es) lhe deixaram profundas marcas.
E são essas marcas que alimentam sua produção folclórica, seu saber etnográfico, seu conhecimento literário, e mesmo sua boemia intelectual. Como Bachelard, Cascudo era um grande leitor de poesia; como em Bachelard, o espírito crítico de Cascudo em relação à poesia, por ser demasiadamente generoso, perdia-se, aqui-acolá, no elogio equivocado.
Termina aqui, acrescente-se, a relação Cascudo/Bachelard. Mas não nos esqueçamos: o contato cascudiano com a realidade das manifestações populares - seus mitos, seus emblemas, suas crendices - e com o mundo pluridimensional da poesia (ele mesmo, quando jovem, poeta) fazem o escritor Luís da Câmara Cascudo: sua grandeza, sua brasilidade.
Mas por que, afinal, as suas obras menos enriquecedoras também despertam a nossa atenção? O nosso olhar crítico?
[ Continua na próxima semana ]
Notas:
¹ Assim como revisitar o Seridó é revisitar o mundo de Oswaldo Lamartine.
² Uma boa introdução ao seu universo literário é o livro Dicionário crítico Câmara Cascudo, organizado por Marcos Silva (São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, Fapesp ; Natal: Fund. José Augusto, EDUFRN, 2003, 332p.)
³ Cascudo escreveu, a partir de 1921, aproximadamente 150 livros, dos quais pelo menos uns 40 são relevantes.
5 comentários:
Oi Moacy.
Acho que as marcas dos "caminhos & veredas da(s) cultura(s) popular(es)" explicam a grandeza de Câmara Cascudo. Estimulante ler o resultado da liberação da tua veia de crítico literário. Estou acompanhando.
Um abraço.
Aqui não só volto a estudar, de forma prazerosa e espontânea, como também revisito com você nossa própria terra. E com esse seu olhar se vai longe... Terra de mar... Coincidentemente estive no Forte dos Reis Magos domingo. Fomos eu e minha companheira caminhar pelas praias urbanas, e aí bateu uma vontade de revisitar o Forte, respirar História, sentir o vento, a poética do espaço de Bachelard... Turista até que nem tão acidental assim... Obrigado por mais uma aula exemplar!
Moacy.
Você viu meu email? (mandei para o de aqui e o que você me informou)
Espero resposta.
Abs.
Gabriel Carneiro
Caro Moacy,
Com você me sinto à descoberta do verdadeiro Brasil, e estou a adorar. Mas não é fácil, minha ignorância é cada vez mais, TOTAL!
E a culpa é sua.
Um abraço ... ah... e um cheiro!
Mais uma leitura certeira, como sempre.
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