quinta-feira, 21 de maio de 2009

Foto de
Otto Stupakoff
(1935-2009)

Ninguém vai se chatear com a foto da coluna de hoje. Numa cidade (num país) onde as mulheres se confundem às melancias pela protuberância das nádegas, onde crianças dançam a boquinha da garrafa, onde se ouvem canções que afirmam e reafirmam a opção preferencial pela raparigagem, pelo beber-cair-e-levantar, que mal há em três mulheres lindas, simples, anônimas, tomarem banho de sol peladas à beira de um mar onde as duas ilhotas ao longe comungam com seus montes de vênus?
Mal nenhum.
A não ser, claro, o fato de serem anônimas.
Reparem bem na foto: duas sorriem, a terceira, misteriosa, não revela nem mesmo a direção do olhar. A mais próxima de nós tem os olhos fechados. Disse algo e achou esse algo engraçado. Ou foi a segunda quem falou. Não. Ela, a do meio, parece mais estar prestando atenção às palavras que a outra falou, o sol na cara alegrando os dentes. Sol pálido, de inverno, insinua a paisagem e o preto & branco da imagem.
Reparem, também, na marca de biquíni da que está de costas, mostrando – não exibindo – uma bunda bem normal no país das hipérboles calipígias: a marca, suficientemente branca, revela que seu biquíni não é dos menores. Não que a moça não pudesse usar um fio-dental, pela caridade!, mas a marca mostra que não é uma nudista contumaz, mas alguém que aproveitou o solzinho acolhedor para reexperimentar a sensação de voltar ao mundo. Como veio. Viemos.
De quem é a foto? De Otto Stupakoff. Morto final do mês passado e que o sobrescrito nunca mais tinha ouvido falar derna que em 2005, mais ou menos, a CartaCapital publicou uma bela matéria sobre seu retorno ao Brazil – salvo engano assinada por Maurício Stycer.
Stupakoff viveu uma dessas vidas de cinema: se mandou pros States bem novo ainda, e fotografou um mundão de gente, celebridades, inclusive. Clicou Nixon com a filha, um juveníssimo Jack Nicholson, um obcecado Truman Capote. E milhares, centenas, dezenas de modelos, especialmente sua mulher, uma miss universo made in sweden.
Voltou pro Brazil pobre, disse. Meio amargo, talvez. Não lembro os detalhes da matéria e é difícil localizar a edição entre as pilhas de revistas que se amontoam pelo apartamento. Pouco importa. Era o retrato de um homem envelhecido, cansado, que freqüentou as páginas e os ambientes da Vogue, da Harper’s Bazaar, Elle, Life. Alguém que chegou ao Everest e ainda não tinha se acostumado aos ares da planície.
(Mario Ivo Cavalcanti, in Embrulhando o peixe, de 11/05)


BALAIO PORRETA 1986
n° 2668
Rio, 21 de maio de 2009


As palavras se agrupam em torno da imagem como os homens em torno de uma mesa ou de uma fogueira.
(Edmond JABÈS/Max MARTINS, in Não para consolar, 1992)


BAGAGEM
Romério Rômulo

trago
uma secura no meu lado direito
que me proíbe de vender bananas.
trago
um martelo, tonel de badalos
que me safira e empresa os olhos.

quando milhos, tenho tantos
que me encarrego do tombo.

a sutil faca me faz anacoreta.


A CASA
Lenilde Freitas
[ in Espaço neutro, 1991,
via A Meus Amigos ]

Da porta principal à derradeira,
um corredor. Só o piso de madeira.

As portas laterais, trancadas.
Todas elas.

Pelas janelas,
fogem os fantasmas gerados na cumeeira.

Que mais?
Que mais?

Ah, sim: uma goteira, sangrando... sangrando...
sujando a casa inteira.


OUTROS PASSÁROS
Lau Siqueira
[ in Poesia Sim ]

quando nas manhãs de sol
os bem-te-vis revelam seus
cantos como os olhos
de um segredo

e em suas asas habitam os
duendes que não suprem
suas sedes com as sobras
do jardim

um violino distante
invade a noite fria

e a solidão mostra seus dentes
amarelo-manga como um
filme que não tem fim


14 comentários:

Ines Mota disse...

Moacy.
Tá tão bonito o Balaio, hoje!
Já havia lido o artigo de "Embrulhando o peixe", sobre foto de Otto Stupakoff, que adorei.
No mais, a "Bagagem" poema de Romério Rômulo me encantou. Não menos encatada fiquei com "A casa" de Lenilde Ramos e "Outros Pássaros" de Lau Siqueira.
Perfeito!
Um enorme beijo.

nina rizzi disse...

moacy :)

ó eu aqui traveis em mais um dia inteiro. e hje de manhã pensava nos teus rios a sangrar. que aqui já é tudo voçoroca e as súplicas odeiam intemperismo químico :s

mas um dia inteiro é feito assim, de três lindas moças anônimas e nuas. que belezura, não menos o texto.

romério rômulo figura literalmente entre meus prefequeridos poetas. "uma coisa". a casa da lenilde tá tal e qual a minha e de tantos que se lêem poetas.

agora quero ser pássara e passar-ar-ar...

ótimo o balaio. beijo :)

líria porto disse...

tudo bonito - da tampa ao fundo do balaio!!!
besos

Unknown disse...

moacy e amigos:

linda foto das mulheres peladas na paisagem. as ilhas fazem rimas com montes de vênus e bundas de qualquer deusa. obrigado.

marcos silva

nydia bonetti disse...

Hoje o balaio está encantado... Foto de Otto Stupakoff, texto incrível, grandes poetas, grandes poemas... Parabéns Moacy.
beijo

Anônimo disse...

Ai Moacy...amei o poema da casa...!!!
E as nuas alí...fiquei até com vontade de estar alí com elas...viva a liberdade!!!

um beijo

Hercília Fernandes disse...

Belíssimo número do Balaio, Moacy.

Da fotografia aos textos. Nada há de indigesto aqui. E, ademais, a imperfeição é per fei ta mente bela...

Somente mentes visionárias, como a sua e as dos demais poetas, para expressar tamanha estranheza, portanto BELEZA!

Um abraço, poetíssimo!
H.F.

Lívio Oliveira disse...

Que foto maravilhosa!!!

BAR DO BARDO disse...

textos admiráveis

mulheres nuas ad... digo... ham... bem, vou dizer nada

adorei do mario o "no país das hipérboles calipígias"

- henrique pimenta

Eleonora Marino Duarte disse...

moacy-menestrel,

causa muita estranheza que cause alguma estranheza mulheres estarem nuas sem ter nada de tão imenso para mostrar além da natural beleza de todos nós.

causa muita estranheza que não cause estranheza alguma um homem como Otto voltar cabisbaixo ao bra[z]il...

é tudo em um grau quase incompreensível e você nos alerta diariamente para as nossas poucas razões restantes, é um lugar privilegiado o balaio.

Ah, eu gosto muito de vir aqui.

o texto do Mário, excelente

o poema de Rômulo, sinceramente, muito bom

(quando digo: “excelente” ou “ muito bom” estou apenas dando um colorido para descrever de alguma forma a minha emoção ao ter contato...),

pudéssemos todos nos vestir à moda ianomâmi e recitar cada qual um verso que lhe parecesse apropriado ao dia ou ao acaso, estaríamos a um passo de ter um pouco de dignidade.

um beijo!

Hercília Fernandes disse...

Moacy,

volto para agradecer a sua presença no HF diante do espelho.

Suas interrogações e afirmativas me causaram bons sustos... uma sensação de estranheza es pan to sa mente bela!

Forte abraço, poetíssimo!

H.F.

Adriana Riess Karnal disse...

Escolheste os poemas a dedo...lindos.

Giuliano Gimenez disse...

fantástico, moacy!!!

tem lugar aí, na tua terrinha,meu bom homem?

Luciana Marinho disse...

de muita beleza o poema com bem-te-vis, violino e o "não tem fim".