BALAIO PORRETA 1986
nº 1960
Natal, 26 de fevereiro de 2007
Poema/Processo, 40 anos
Repeteco
A ESTRADA
Moacy Cirne
Sinto o primeiro impacto. De imediato, sou dominado por inesperada quentura nas costas. Mas consigo correr. E corro. Um segundo impacto me atinge. Preciso correr, mais ainda. Um rio me aguarda, à esquerda. Mergulho nele. Suas águas me envolvem com certa doçura. Mas de onde surgira aquele rio, em plena Glória, entre a Lapa e o Catete? Não importa; o que importa é que estou a salvo. O calor aumenta. Ouço os sinos da igreja mais próxima. Uma voz de rapariga me chama. Ambrósio, Ambrósio, cuidado com a ponte, não se deixe enforcar. O fogo me queima por dentro. Não sei nadar, lembro-me de repente. O que está acontecendo, então? Só sei que não existe mais qualquer sinal de rio; estou numa estrada de tijolos amarelos, familiar cena de filme antigo. Caminho com passos lentos; o calor que me domina é intenso. Pressinto que minhas roupas estão encarnadas. E encarnado é o meu cordão, em disputa contra o cordão azul. Sou uma criança apaixonada pela rainha do Encarnado na cidade da minha infância. Carlitos, o Gordo e o Magro me fazem companhia, sorrindo. Durango Kid aproxima-se: Não se preocupe, estou aqui para defendê-lo dos bandidos. Estou aqui para salvá-lo das balas perdidas. Confie em mim. Olho para o meu avô, com sua ternura sem fim. No caminhão da feira, cortando o cheiro da manhã carregada de mangas e esperanças, contamos os jumentos à beira da estrada, a mesma estrada de tijolos amarelos. À esquerda e à direita vemos jumentos tristes e honestos. São dezenas, são centenas deles. Estranho, parecem pássaros que não sabem voar. Quem ganhará a aposta? O feirante bêbado de auroras garantindo que à direita do veículo, beirando a estrada, maior seria o número daqueles pobres e inevitáveis animais? Ou vencerá o outro? O outro não sou eu; eu sou aquele que precisa mergulhar no Poço de Santana, no final da estrada. Mas o Poço está longe, muito longe. Nunca fiz um filho. Nunca plantei uma árvore. Nunca escrevi um livro. Nunca entrei num túnel tão comprido. E as coisas estão ficando cada vez mais nebulosas. Além, já noite, do alto do coreto da praça, Luiz Gonzaga acena para mim. Asa branca, assum preto, légua tirana. Baião-de-dois. Baião-de-três. Baião-de-cinco. O império submarino. Flash Gordon no Planeta Mongo. A volta do Aranha-Negra. Sansão e Dalila. Nunca houve uma mulher como Gilda. Os melhores anos de nossas vidas. Belinda. O barco das ilusões. Amar foi minha ruína. Dois palermas em Oxford. Paraíso proibido. Tarzan e as amazonas. O império das ilusões. O Aranha-Negra no Planeta Mongo. Sansão, Gilda, Belinda e Dalila. Nunca houve uma mulher como Tarzan. Estou cansado. O chão da Glória tem gosto de sangue e sertão. Preciso dormir.
8 comentários:
Uma beleza esse sonho que antecede o sono!
Precisa publicar mais repetecos , meu caro Moacy.
Forte abraço.
Maravilha de texto, Moacy, maravilha! Entre a vigília e o sono, a sonholência... Um beijo ;-)
Belo texto, Moacy. Parabéns. Continue nos brindando com material desta qualidade literária.
Um abraço e uma boa semana.
Uau, caro mestre!
Seria um sonho? Um delírio? Uma alucinação?
Certamente é um texto de alto coturno. Muito bom, gostei muito.
Um forte abraço!
moacy: venho cortando o cheiro da noite para dizer que estive na ribeira (à noite) recentemente e o quadro que me veio à memória deveras se assemelha a esse desenhado pelo Sanderson. o tempo passa...
Gostei dos caminhos da estrada cortando os cheiros da manhã. grande abraço.
Linda essa estrada Moacy...Uma estrada que a tantas outras nos leva... Particularmente me emocionou a imagem dos "jumentos, tristes e honestos" e que são pássaros que "não sabem voar"... São tantos os anônimos nessa estrada que funde sonho, sono, neblina, poeira, Glória, glórias e sertões que tendemos a não voltar. Ficar do outro lado é uma medida inexata entre a realidade e o devaneio, entre a vida e a morte. Fico com todos os lados.
Beijos...
P.S.: Vai ter algum lance no dia da poesia por aí? aqui estamos preparando algo especial, mas apenas para dez dias depois. Depois te convido formalmente, mas, se possível, nos mantenha informados dos planos natalenses para o dia da nossa queridíssima poesia...quem sabe não apareçamos por aí?!
Beijão de novo!
Moacy,
Seu texto faz dobradinha com o de Sanderson. Este falando de uma Ribeira morta e esquecida, você se lembrando de sua infância em Caicó, de seus heróis e heroínas do cinema. E, de quebra, do grande Gonzagão e de algumas de suas jóias musicais. Um abraço.
palavras intrigantes, moacy, especialmente se lidas numa lan house da rua da matriz em acari, ao som dos caminhões que sobem e descem a BR, e ainda com a distante melodia de um rádio ligado numa estação am da região. é música na tela e no ar.
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