Niko Guido
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BALAIO PORRETA 1986
nº 2146
Rio, 25 de outubro de 2007
UM LIVRO, UM FILME, UMA CORRENTE
A atual biblioteca dos meus sonhos começou a se formar em junho de 1958, quando a minha família ainda residia em Caicó. Conservo comigo até o hoje o seu livro inaugural: Antologia do folclore brasileiro, de Luís da Câmara Cascudo, presente de Neide Pereira Cirne, a segunda mulher de meu pai. Depois, em Natal, até 1967, os livros se multiplicaram. O problema maior deu-se a seguir: como trazê-los para o Rio? Felizmente, meu irmão Milton e Fátima Campos, após o casamento, souberam guardá-los com o carinho e o cuidado necessários. Como acontecera antes, acrescente-se. Aos poucos, touxe para o Rio o que me era mais precioso. Em várias e várias viagens, às vezes semestrais, às vezes anuais, às vezes mais espaçadamente. Mas alguns títulos se perderam. É natural. Alguns amigos o levavam, de empréstimo. Um desses amigos, de uma só vez, levou mais de 100 volumes. Todo o Sartre, de 20 a 25 títulos. Todo o Camus, de 25 a 30 obras. Alguma coisa da Simone de Beauvoir. Do Dostoiévski e Faulkner, também. A coleção de José Lins do Rego, essa sim por mim presenteada. Decerto, bom uso o amigo deve ter feito de todos eles. Assim espero.
Aliás, um dos meus prazeres atuais, no Rio, é procurar em sebos alguns daqueles livros perdidos. Refiro-me não aos mesmos exemplares, por total impossibilidade, mas às mesmas edições, claro, adquiridas sobretudo na Livraria Universitária, em plena Av. Rio Branco, nas proximidades do Grande Ponto. Foi o que aconteceu antes de ontem: no simpático Luzes da Cidade, em Botafogo, no Espaço de Cinema, encontrei a edição de 1961, pela Difusão Européia do Livro, de uma obra que me fora importante, então, na cidade Natal que tanto me marcou: Memórias de uma moça bem comportada, de Simone de Beauvoir. Bem conservado e por um preço razoável, não tive a menor dúvida. A mesma edição voltou a fazer parte da minha biblioteca - a Biblioteca das Águas Seridoenses. Ontem mesmo comecei a folhear algumas de suas páginas.
O livro, adquirido em março de 1963 (o meu primeiro exemplar provavelmente foi comprado na já citada Universitária em 1962), pertencera a uma tal Suzana Moraes Ribeiro. E agora vem o primeiro dado curioso da história: no dia 15 de setembro daquele ano, um domingo, no Cinema Palácio, Suzana Ribeiro (ou alguém que estava com esse "particular" exemplar nas mãos) viu um filme muito aplaudido na época: Cleópatra, com Elizabeth Taylor e Richard Burton. E o viu na 1ª sessão. E sentou-se na poltrona 14 da fila V. O ingresso, em bom estado de conservação, com essas informações, encontrava-se no interior do livro. Não me canso de perguntar: será que Suzana (feia? bonita? gorda? magra? recatada? indisciplinada? existencialista? marxista?) gostou do filme? Como terá sido a sua vida? Será que ela foi ou é uma pessoa feliz? Gostava ou gosta de futebol? De crepúsculos? De Bossa Nova? Das águas de março? Será que ela conheceu Natal?
Mas o mais curioso veio a seguir: o o ingresso encontrava-se entre as páginas 160 e 161. Acontece que corre pela internet, neste momento, uma "estranha" corrente que nos faz ler a 5ª linha (se não me falha a memória) da página 161 do livro mais próximo do internauta levado a participar da "brincadeira". Já fui convocado com essa finalidade. Saí pela tangente. Minhas leituras nunca são casuais. E por que exatamente a página 161? Não, não acredito em espiritismo ou algo similar. Não, não acredito em ocultismo ou algo do gênero. Neste sentido, sou materialista, embora marcado pelos deuses e pela Nossa Senhora de Sant'Ana do meu Seridó. Contudo, não resisto à tentação e leio, segundo as indicações da corrente: "Há muito prometera a mim mesma fugir à horrível vulgaridade quotidiana".
Na verdade, esta frase poderia ter sido destacada por mim naqueles anos natalenses. Terei eu a sublinhado? Pensando bem, não seria nada absurdo ou improvável se o tivesse feito. Afinal, em Natal, a capital do tédio, eu e meus amigos procurávamos fugir da vulgaridade cotidiana como Deus e o Diabo fogem da terra em transe. Vendo bons filmes. Amando muitas mulheres (geralmente, à distância). Fazendo política (na medida do possível). E lendo bons livros.
A BIBLIOTECA DOS MEUS SONHOS
Memórias de uma moça bem comportada, de Simone de Beauvoir. Trad. Sérgio Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1961, 318p. [] Quando lido em Natal, em 1962/3, causou-me ótima impressão: eu vivia o meu marxismo-existencialista (aparentemente uma contradição em si) de forma intensa. E inquieta. Bastante inquieta. E agora? Será que o livro resistiu ao tempo? Continuará sendo uma escrita capaz de emocionar por sua cristalina simplicidade e por sua agudeza de pensamento, fortemente feminista?
8 comentários:
O que mais me toca, talvez com o que mais eu me identifico é mesmo com a "Nossa Senhora de Sant'Ana do meu Seridó", para mim, Santana, tão-somente. Não por devoção, talvez não a tenha por nenhum santo, embora seja católico como sou. É que falar de Santana parece falar de Caicó, de mim, da minha família, da minha mãe. No mais, ficarei com "Fazendo política (na medida do possível). E lendo bons livros". Mulher, amo uma de perto. Quanto à literatura feminina fico com Lya Luft e sua maturidade. Parabéns pela postagem, Moacy. Está expressiva, autêntica e inteligente, como sempre.
Moacy: tenho aqui comigo a 3ª edição do livro da Simone, de 1964, mas que constam 327 pgs.Interessante é que o livro se encontrava bem perto de mim. E aproveito um trecho do mesmo: 'Que é que está acontecendo? É isso minha vida? Era só isso? Será que vai continuar sempre?'.
Grande Simone de Beauvoir!
Um abraço...
Olá, caríssimo Moacy!
Está a se preparar um encontro de alguns escritores de blog na deliciosas Colombo do Forte!!! Que tal, hein??hehehe
Um grande abraço
Caro Moacy,
Como já relatei numa postagem no meu blogue, adquiri o livro "Três Marias", de Rachel de Queiroz. E a pessoa que o lera antes (uma mulher), tinha feito várias anotações no livro, que estava bem conservado. É bom quando nos deparamos com coisas assim, que nos dão oportunidade de escrever uma crônica, às vezes até um conto. No seu caso, foi ainda mais interessanta porque havia no livro (que você perdera anos atrás) um ingresso. São essas pequenas coisas que a vida nos presenteia, que dá valor a ela, não acha? Um abraço. P.S. - Fico imaginando se o ingresso fosse de "A Aventura".
Gosto quando você publica texto seu, Menino.
Beijos.
Excelente crônica, Moacy. Uma bela demonstração de amor aos livros e à literatura. Parabéns.
Um abraço.
Concordo com Jens...Me emociona esse amor à leitura, à cultura, essa busca de crescimento através dos bons autores. Tão bom seria se mais jovens de hoje redescobrissem essa magia.
Beijo pr'ocê.
um ingresso datado, uma flor murcha, um bilhete rasgado, uma foto perdida, uma anotação esquecida, um folheto futurista ecoando o passado - são as nossas contribuições de ledores, empréstimos dalma aos livros, provando q, sim, são organismos vivos. bravo, moacy! são esses pequenos achados q valem mais q qualquer crítica formal e ou acadêmica a qualquer livro...
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