quarta-feira, 6 de agosto de 2008


O nascimento de Vênus
1. por Sandro Botticelli, 1485
2. por Raoul Dufy, séc. XX


BALAIO PORRETA 1986
n° 2391
Rio, 6 de agosto de 2008

O pensamento deve elevar-se; o coração, ficar na terra.
(Joaquim NABUCO. Pensamentos soltos)


POEMA
Margarida Finkel
[ in No tear dos ventos, 1980 ]

Na noite futura
calarás
tu que conheces
tantas palavras
calarás
e subirão da terra
as flores do teu silêncio


POEMA
Ada Lima
[ in Menina Gauche ]

Ainda trago nas costas
as cicatrizes
das asas que me foram postas.

Não há invenção mais cruel que os altares.


O LUGAR PERFEITO
Sheyla Azevedo
[ in Bicho Esquisito ]

Umas duas, três ou cinco vezes durante o dia parto rumo ao nada. É um local ermo no meu trabalho, onde ficam as lixeiras, um sumidouro estourado, uma escada absolutamente imunda, e umas vinte mil piubas de cigarro.

Já quando saio dos corredores frios e infindáveis - onde muitas vezes eu passo e me deparo com pessoas tão abandonadas à própria sorte que não aparentam ter outra alternativa senão sentarem-se rente ao chão, como mendigos a estender a mão para quem está no andar de cima – tento me despir do que vou deixando para trás. É quase como um ritual necessário para que eu possa voltar a praticar a apnéia diária do trabalho. Lá, fumando meus cigarros, em meio ao lixo, à lama do sumidouro mal projetado, e sentada na escada imunda, é como se me libertasse para respirar.

Tenho reparado que é nesse lugar onde minhas humanidades mais têm se exacerbado: quando estou com fome, sinto-me faminta; quando estou cansada, pareço não me sustentar nas pernas; quando tenho uma idéia, parece a mais brilhante; se estou triste, me sinto em casa. É como se em todos os outros lugares - até mesmo no meu quarto, na companhia do meu gato mimado e condescendente com minha carência – eu representasse o papel de mim mesma, só que do lado de fora.

Uma, duas, três ou quantas vezes forem preciso, parto rumo ao nada. Para sobreviver.

[][][]

No blogue do POEMA/PROCESSO,
depois de A ave, de WDP,
mais um Seridoísmo.

6 comentários:

Anônimo disse...

Sheyla é um dos bons nomes que temos nas letras. Estou esperando a reunião de seus textos em livro. Torço que isto venha logo!
Abs.
Lívio

Anônimo disse...

Adoro os textos da Sheyla... Seria tão bom vê-la publicada!

Abraço grato.

Ada

Anônimo disse...

Adoro os textos da Sheyla... Seria tão bom vê-la publicada!

Abraço grato.

Ada

Anônimo disse...

"O pensamento deve elevar-se; o coração, ficar na terra... e os sonhos em todos os lugares! Desculpe, não resisti!
Então, Moacy! Eu já te conhecia lá do espaço do poema processo (que há muito está nos meus favoritos). Descobri que vc anda por caminhos por onde tb ando. E a curiosidade me trouxe aqui.
Li um tanto grande. Gostei um tanto mais. Embora o meu espaço seja o retrato da alienação politico-social-cultural, ou talvez por isso, ler blogs como o seu é a forma de alimentar as minhas fomes.
Foi um pazer!
Beijos

Mme. S. disse...

Querido Moacy, esse sim é um "lugar mais que perfeito", para mim, é sempre uma honra fazer parte desse Balaio mais que Porreta. Obrigada, mais uma vez.

Lívio, habemos esperato... se é que me entende.

Ada é um prazer imenso saber que vc já me leu algum dia. Você me é uma fonte de inspiração e uma grata surpresa nessa terra debaixo do sol nublado de agosto e das primaveras que ainda virão. Se me permite, quero adicionar seu blog lá no Bicho.

Marco disse...

Belo poema e belísasimo texto. Partir é preciso, viver também. Carpe Diem.