segunda-feira, 26 de janeiro de 2009


A Torre de Caicó,
vulgarmente conhecida como
A Torre de Babel,
segundo os delírios de
Pieter Bruegel,
em 1563


BALAIO PORRETA 1986
n° 2549
Rio, 26 de janeiro de 2009

É preciso lutar, sonhar, querer!
(Muros da Cinelândia, Rio, final dos anos 70)


O LIVRO DOS LIVROS
(4)
Texto estabelecido
pela
Assembléia dos Deuses Seridoenses
com a supervisão de
Olavo Madeira Que Cupim Não Rói

A Torre de Caicó

Os mais antigos ainda se lembravam da Biblioteca de Babel. Toda a terra usava uma só língua, a tapuia, com seu palavreado rascante e quase sem vogais, com raras exceções, sobretudo para os nomes das pessoas e dos lugares. E belos eram os nomes dos lugares. E poéticos eram seus nomes. Quixeré boquixeré era Riacho da Serra Brava; Quexoidi, Campo da Pedra; Quimaycoco, Pedra Brava; Utrebetukuam, Riacho Escuro; Cucuray, Poço d'Água Fria.

Mas ainda não existia a palavra califon, nem a expressão "a merda que virou boné"; não existia a palavra bangalafumenga, nem a expressão "acabar-se na mão"; não existia a palavra baitola, nem a expressão "boca da noite"; não existia a palavra granvanha, nem a expressão "bucho furado"; não existia a palavra papudinho, nem a expressão "cair nas águas". Não existiam outras palavras, outras expressões não existiam. "Casado na igreja verde", então, nem pensar.

E aconteceu que, partindo de vários lugares, em direção ao Seridó, como antes já ocorrera, os homens acharam a Caatinga Grande, e lá se estabeleceram, e lá disseram: "Vamos fazer tijolos e cozinhá-los ao fogo, descoberto pelos ancestrais de Caicó, e aproveitar as muitas pedras da região". E assim fizeram, no rumo de Queicuó e do Poço de Santana. E começaram a dividir as terras e os bois de forma desigual. Uns poucos ficavam com muito; a maioria não ficava com nada.

Mas havia aqueles que não se esqueciam dos ensinamenos dos livros proibidos nas primeiras eras do Jardim do Seridó. Rosembergue das Amérikas e Sindoval Rodrigo do Grajaú eram dois deles. Insatisfeitos com a situação do mundo, uniram-se e com a ajuda de operários, camponeses, estudantes, atrizes do teatro alternativo e do teatro rebolado, e atores e técnicos da chanchada nacional, resolveram construir uma torre nas proximidades de Caicó capaz de alcançar as nuvens e o Senhor das Alturas. "Vamos construir para nós uma nova Queicuó e uma torre que chegue aos céus, para mostrar ao Senhor das Alturas os seus erros ao criar a terra com tantas injustiças e tanta gente exploradora e medíocre".

Mas o Senhor das Alturas não gostou do que viu. E o Senhor das Alturas disse: "Eis que eles formam um só povo e todos falam a mesma língua. Isto é apenas o começo de suas fantasias. Agora nada os impedirá de fazer o que se propuserem. Vou descer e confundir-lhes a língua, de modo que não se entendam uns aos outros". E com seu poder diabólico o Senhor das Alturas fez com que a língua tapuia por todos falada e compreendida se multiplicasse em várias línguas para que os homens não mais se entendessem e abandonassem a construção da torre. E assim surgiram outras línguas. E assim surgiram outros modos de expressão: o seridoense, o tupi-guarani, o quichua, o náhuatl, o carioquês, o paulistês, o baianês, o pernambuquês, o gauchês, o mineiro-uai, o sânscrito, o quicongo, o quimbundo, o iorubá, o latim, o árabe, o espanhol, o grego, o franco-italiano, o joyceano, o roseano e outras línguas menos conhecidas, como a inglesa e a alemã.

E os habitantes do Seridó desistiram da Torre. E os os habitantes do Seridó mais ainda se espalharam por outras terras e conheceram outras gentes. E os habitantes do Seridó passaram a cultuar a Senhora de Sant'Anna, avó de Eu Sou o Senhor da Cruz, de origem franco-judaico-palestina, parente em primeiro grau do Senhor das Alturas. E a Senhora de Sant'Anna era doce e compreensiva. E a Senhora de Sant'Anna era amiga e companheira. E a Senhora de Sant'Anna não carregava água em balaio. Nem dava o doidão.

Próximo capítulo:
A história de Zeferino Cabeção, o Profeta

Nota dos editores d'O Livro dos Livros
para as palavras e expressões usadas,
segundo Ma
x Antonio Azevedo de Medeiros
e outros escribas:


Califon
: Sutiã
Merda que virou boné
: O que dá tudo errado; a maior confusão
Bangalafumenga
: Zé-Ninguém
Acabar-se na mão
: Masturbar-se
Baitola
: Homossexual
Boca da noite
: Tardinha, quase noite; noitinha
Granvanha
: Comida escassa
Bucho furado
: Aquele que não sabe guardar segredo
Papudinho
: Cachaceiro
Cair nas águas
: Deixar-se enganar

Casado na igreja verde
: amancebado; amigado
Carregar água em balaio : Perder tempo; esforço inútil
Dar o doidão : Agir impetuosamente; enlouquecer
Nota adicional -
Quichua : [Língua dos incas]
Náhuatl : [Língua dos astecas]
Quicongo, quimbundo, iorubá : [Línguas africanas]
Queicuó/Caicó : [Rio da ave cuó (acauã)]

11 comentários:

Mariana Botelho disse...

eita, trem bão!

Theo G. Alves disse...

quero ver o dia em que o Senhor das Alturas mandar atear fogo em Sodoma Novos (ou será Currais Gomorras?)

um grande abraço!

Mme. S. disse...

"Bangalafumenga" - essa expressão é muito boa, caro amigo.

Sandra Porteous disse...

Estou adorando O Livro dos Livros! Aguardo curiosa as previsões de Zeferino Cabeção, o Profeta.

cordiais saudações

Anônimo disse...

moacy:
merda que virou boné.o joyceano e o roseano são próximos.roseano eu falo
pelas origens.
parece que o bruegel andou mesmo pelo
seridó.
romério
ps.mandei um e-mail pra você sobre o cronópios.endereço do balaio.tudo certo por lá.farão contato.

Pedrita disse...

a torre de babel me remete a muitas lembranaças e muitos motivos. beijos, pedrita

Anônimo disse...

Adorei a história, Moacyr Cirne...e o glossário utilíssimo porque fiquei muito curiosa em saber os significados de termos que nunca ouvi..rs Dá vontade de saber o fim da história. Não vai publicar em capítulos, não?? E grata pela visita ao blog...quem é vivo sempre aparece, e estamos vivíssimos, de corpo e alma... beijoss!!!

Anônimo disse...

balaio sempre porreta e vermelho!
O Livro dos livros! eu gosto muito.
valeu.

Ane Brasil disse...

Vixe, menino, essa história aí da torre de Seridó tá porreta demais! continue, continue, quero ver no que vai dar tudo isso!
E as expressões? Menino, se você não explicasse direitinho eu ia era me roer de curiosidade.
Sorte e saúde pra todos

Adrianna Coelho disse...


o livro dos livros é o livro! rsrsrs

eu gosto muito das notas dos editores tbm!

"E a Senhora de Sant'Anna não carregava água em balaio. Nem dava o doidão."

ahaahhaahahahhaaa

Marco disse...

Rá, rá, rá... Dei boas risadas, caro mestre Moacy...
Olha, está melhor contada que na Bíblia! Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida. Carpe diem.