A Torre de Caicó,
vulgarmente conhecida como
A Torre de Babel,
segundo os delírios de
Pieter Bruegel,
em 1563
BALAIO PORRETA 1986
n° 2549
Rio, 26 de janeiro de 2009
É preciso lutar, sonhar, querer!
(Muros da Cinelândia, Rio, final dos anos 70)
O LIVRO DOS LIVROS
(4)
Texto estabelecido
pela
Assembléia dos Deuses Seridoenses
com a supervisão de
Olavo Madeira Que Cupim Não Rói
A Torre de Caicó
Os mais antigos ainda se lembravam da Biblioteca de Babel. Toda a terra usava uma só língua, a tapuia, com seu palavreado rascante e quase sem vogais, com raras exceções, sobretudo para os nomes das pessoas e dos lugares. E belos eram os nomes dos lugares. E poéticos eram seus nomes. Quixeré boquixeré era Riacho da Serra Brava; Quexoidi, Campo da Pedra; Quimaycoco, Pedra Brava; Utrebetukuam, Riacho Escuro; Cucuray, Poço d'Água Fria.
Mas ainda não existia a palavra califon, nem a expressão "a merda que virou boné"; não existia a palavra bangalafumenga, nem a expressão "acabar-se na mão"; não existia a palavra baitola, nem a expressão "boca da noite"; não existia a palavra granvanha, nem a expressão "bucho furado"; não existia a palavra papudinho, nem a expressão "cair nas águas". Não existiam outras palavras, outras expressões não existiam. "Casado na igreja verde", então, nem pensar.
E aconteceu que, partindo de vários lugares, em direção ao Seridó, como antes já ocorrera, os homens acharam a Caatinga Grande, e lá se estabeleceram, e lá disseram: "Vamos fazer tijolos e cozinhá-los ao fogo, descoberto pelos ancestrais de Caicó, e aproveitar as muitas pedras da região". E assim fizeram, no rumo de Queicuó e do Poço de Santana. E começaram a dividir as terras e os bois de forma desigual. Uns poucos ficavam com muito; a maioria não ficava com nada.
Mas havia aqueles que não se esqueciam dos ensinamenos dos livros proibidos nas primeiras eras do Jardim do Seridó. Rosembergue das Amérikas e Sindoval Rodrigo do Grajaú eram dois deles. Insatisfeitos com a situação do mundo, uniram-se e com a ajuda de operários, camponeses, estudantes, atrizes do teatro alternativo e do teatro rebolado, e atores e técnicos da chanchada nacional, resolveram construir uma torre nas proximidades de Caicó capaz de alcançar as nuvens e o Senhor das Alturas. "Vamos construir para nós uma nova Queicuó e uma torre que chegue aos céus, para mostrar ao Senhor das Alturas os seus erros ao criar a terra com tantas injustiças e tanta gente exploradora e medíocre".
Mas o Senhor das Alturas não gostou do que viu. E o Senhor das Alturas disse: "Eis que eles formam um só povo e todos falam a mesma língua. Isto é apenas o começo de suas fantasias. Agora nada os impedirá de fazer o que se propuserem. Vou descer e confundir-lhes a língua, de modo que não se entendam uns aos outros". E com seu poder diabólico o Senhor das Alturas fez com que a língua tapuia por todos falada e compreendida se multiplicasse em várias línguas para que os homens não mais se entendessem e abandonassem a construção da torre. E assim surgiram outras línguas. E assim surgiram outros modos de expressão: o seridoense, o tupi-guarani, o quichua, o náhuatl, o carioquês, o paulistês, o baianês, o pernambuquês, o gauchês, o mineiro-uai, o sânscrito, o quicongo, o quimbundo, o iorubá, o latim, o árabe, o espanhol, o grego, o franco-italiano, o joyceano, o roseano e outras línguas menos conhecidas, como a inglesa e a alemã.
E os habitantes do Seridó desistiram da Torre. E os os habitantes do Seridó mais ainda se espalharam por outras terras e conheceram outras gentes. E os habitantes do Seridó passaram a cultuar a Senhora de Sant'Anna, avó de Eu Sou o Senhor da Cruz, de origem franco-judaico-palestina, parente em primeiro grau do Senhor das Alturas. E a Senhora de Sant'Anna era doce e compreensiva. E a Senhora de Sant'Anna era amiga e companheira. E a Senhora de Sant'Anna não carregava água em balaio. Nem dava o doidão.
Próximo capítulo:
A história de Zeferino Cabeção, o Profeta
Nota dos editores d'O Livro dos Livros
para as palavras e expressões usadas,
segundo Max Antonio Azevedo de Medeiros
e outros escribas:
Califon : Sutiã
Merda que virou boné : O que dá tudo errado; a maior confusão
Bangalafumenga : Zé-Ninguém
Acabar-se na mão : Masturbar-se
Baitola : Homossexual
Boca da noite : Tardinha, quase noite; noitinha
Granvanha : Comida escassa
Bucho furado : Aquele que não sabe guardar segredo
Papudinho : Cachaceiro
Cair nas águas : Deixar-se enganar
Casado na igreja verde : amancebado; amigado
Carregar água em balaio : Perder tempo; esforço inútil
Dar o doidão : Agir impetuosamente; enlouquecer
Nota adicional -
Quichua : [Língua dos incas]
Náhuatl : [Língua dos astecas]
Quicongo, quimbundo, iorubá : [Línguas africanas]
Queicuó/Caicó : [Rio da ave cuó (acauã)]
vulgarmente conhecida como
A Torre de Babel,
segundo os delírios de
Pieter Bruegel,
em 1563
BALAIO PORRETA 1986
n° 2549
Rio, 26 de janeiro de 2009
É preciso lutar, sonhar, querer!
(Muros da Cinelândia, Rio, final dos anos 70)
O LIVRO DOS LIVROS
(4)
Texto estabelecido
pela
Assembléia dos Deuses Seridoenses
com a supervisão de
Olavo Madeira Que Cupim Não Rói
A Torre de Caicó
Os mais antigos ainda se lembravam da Biblioteca de Babel. Toda a terra usava uma só língua, a tapuia, com seu palavreado rascante e quase sem vogais, com raras exceções, sobretudo para os nomes das pessoas e dos lugares. E belos eram os nomes dos lugares. E poéticos eram seus nomes. Quixeré boquixeré era Riacho da Serra Brava; Quexoidi, Campo da Pedra; Quimaycoco, Pedra Brava; Utrebetukuam, Riacho Escuro; Cucuray, Poço d'Água Fria.
Mas ainda não existia a palavra califon, nem a expressão "a merda que virou boné"; não existia a palavra bangalafumenga, nem a expressão "acabar-se na mão"; não existia a palavra baitola, nem a expressão "boca da noite"; não existia a palavra granvanha, nem a expressão "bucho furado"; não existia a palavra papudinho, nem a expressão "cair nas águas". Não existiam outras palavras, outras expressões não existiam. "Casado na igreja verde", então, nem pensar.
E aconteceu que, partindo de vários lugares, em direção ao Seridó, como antes já ocorrera, os homens acharam a Caatinga Grande, e lá se estabeleceram, e lá disseram: "Vamos fazer tijolos e cozinhá-los ao fogo, descoberto pelos ancestrais de Caicó, e aproveitar as muitas pedras da região". E assim fizeram, no rumo de Queicuó e do Poço de Santana. E começaram a dividir as terras e os bois de forma desigual. Uns poucos ficavam com muito; a maioria não ficava com nada.
Mas havia aqueles que não se esqueciam dos ensinamenos dos livros proibidos nas primeiras eras do Jardim do Seridó. Rosembergue das Amérikas e Sindoval Rodrigo do Grajaú eram dois deles. Insatisfeitos com a situação do mundo, uniram-se e com a ajuda de operários, camponeses, estudantes, atrizes do teatro alternativo e do teatro rebolado, e atores e técnicos da chanchada nacional, resolveram construir uma torre nas proximidades de Caicó capaz de alcançar as nuvens e o Senhor das Alturas. "Vamos construir para nós uma nova Queicuó e uma torre que chegue aos céus, para mostrar ao Senhor das Alturas os seus erros ao criar a terra com tantas injustiças e tanta gente exploradora e medíocre".
Mas o Senhor das Alturas não gostou do que viu. E o Senhor das Alturas disse: "Eis que eles formam um só povo e todos falam a mesma língua. Isto é apenas o começo de suas fantasias. Agora nada os impedirá de fazer o que se propuserem. Vou descer e confundir-lhes a língua, de modo que não se entendam uns aos outros". E com seu poder diabólico o Senhor das Alturas fez com que a língua tapuia por todos falada e compreendida se multiplicasse em várias línguas para que os homens não mais se entendessem e abandonassem a construção da torre. E assim surgiram outras línguas. E assim surgiram outros modos de expressão: o seridoense, o tupi-guarani, o quichua, o náhuatl, o carioquês, o paulistês, o baianês, o pernambuquês, o gauchês, o mineiro-uai, o sânscrito, o quicongo, o quimbundo, o iorubá, o latim, o árabe, o espanhol, o grego, o franco-italiano, o joyceano, o roseano e outras línguas menos conhecidas, como a inglesa e a alemã.
E os habitantes do Seridó desistiram da Torre. E os os habitantes do Seridó mais ainda se espalharam por outras terras e conheceram outras gentes. E os habitantes do Seridó passaram a cultuar a Senhora de Sant'Anna, avó de Eu Sou o Senhor da Cruz, de origem franco-judaico-palestina, parente em primeiro grau do Senhor das Alturas. E a Senhora de Sant'Anna era doce e compreensiva. E a Senhora de Sant'Anna era amiga e companheira. E a Senhora de Sant'Anna não carregava água em balaio. Nem dava o doidão.
Próximo capítulo:
A história de Zeferino Cabeção, o Profeta
Nota dos editores d'O Livro dos Livros
para as palavras e expressões usadas,
segundo Max Antonio Azevedo de Medeiros
e outros escribas:
Califon : Sutiã
Merda que virou boné : O que dá tudo errado; a maior confusão
Bangalafumenga : Zé-Ninguém
Acabar-se na mão : Masturbar-se
Baitola : Homossexual
Boca da noite : Tardinha, quase noite; noitinha
Granvanha : Comida escassa
Bucho furado : Aquele que não sabe guardar segredo
Papudinho : Cachaceiro
Cair nas águas : Deixar-se enganar
Casado na igreja verde : amancebado; amigado
Carregar água em balaio : Perder tempo; esforço inútil
Dar o doidão : Agir impetuosamente; enlouquecer
Nota adicional -
Quichua : [Língua dos incas]
Náhuatl : [Língua dos astecas]
Quicongo, quimbundo, iorubá : [Línguas africanas]
Queicuó/Caicó : [Rio da ave cuó (acauã)]
11 comentários:
eita, trem bão!
quero ver o dia em que o Senhor das Alturas mandar atear fogo em Sodoma Novos (ou será Currais Gomorras?)
um grande abraço!
"Bangalafumenga" - essa expressão é muito boa, caro amigo.
Estou adorando O Livro dos Livros! Aguardo curiosa as previsões de Zeferino Cabeção, o Profeta.
cordiais saudações
moacy:
merda que virou boné.o joyceano e o roseano são próximos.roseano eu falo
pelas origens.
parece que o bruegel andou mesmo pelo
seridó.
romério
ps.mandei um e-mail pra você sobre o cronópios.endereço do balaio.tudo certo por lá.farão contato.
a torre de babel me remete a muitas lembranaças e muitos motivos. beijos, pedrita
Adorei a história, Moacyr Cirne...e o glossário utilíssimo porque fiquei muito curiosa em saber os significados de termos que nunca ouvi..rs Dá vontade de saber o fim da história. Não vai publicar em capítulos, não?? E grata pela visita ao blog...quem é vivo sempre aparece, e estamos vivíssimos, de corpo e alma... beijoss!!!
balaio sempre porreta e vermelho!
O Livro dos livros! eu gosto muito.
valeu.
Vixe, menino, essa história aí da torre de Seridó tá porreta demais! continue, continue, quero ver no que vai dar tudo isso!
E as expressões? Menino, se você não explicasse direitinho eu ia era me roer de curiosidade.
Sorte e saúde pra todos
o livro dos livros é o livro! rsrsrs
eu gosto muito das notas dos editores tbm!
"E a Senhora de Sant'Anna não carregava água em balaio. Nem dava o doidão."
ahaahhaahahahhaaa
Rá, rá, rá... Dei boas risadas, caro mestre Moacy...
Olha, está melhor contada que na Bíblia! Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida. Carpe diem.
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