O balanço
(1767)
Jean Honoré Fragonard
BALAIO PORRETA 1986
n° 2672
Rio, 25 de maio de 2009
Jó é um dos personagens mais conhecidos da Bíblia. Ao mesmo tempo, é um dos caracteres mais complexos e as palavras que aparecem em seu livro amiúde são indecifráveis. A beleza literária do texto, escrito originalmente em hebraico e praticamente todo em verso, impressiona. O livro é obra de várias mãos e de várias tradições e lendas que se foram superpondo. Aborda o tema universal da dor e da justiça. Por que tem de sofrer o inocente? Pode existir um Deus incapaz de fazer justiça?
(Juan ARIAS. A Bíblia e seus segredos, 2004)
O LIVRO DOS LIVROS
(31a)
Texto estabelecido por Moatidatotatýne, o Escriba,
Eme Costa, o Ateu, e Josias F. Negreiros, o Gnóstico
O Livro de Jó da Silva e Silva
Justo, honesto, podre de rico, feliz, bem casado, sete filhos e sete filhas, apreciador de poesia, temente e fiel ao Senhor das Alturas, assim era Jó da Silva e Silva, cearense de Nova Russas e amigo de Mário Pontes(¹). A sua riqueza material, além de uma baita propriedade rural, abrangia 500 bois e vacas, 600 cabras e 500 jumentos e éguas. E de tanto ouvir falar na fartura, na religiosidade e na beleza do Seridó, em plena Capitania do Ryo Grande, para lá resolveu se mudar com a família. E assim o fez. Em lá chegando, estabeleceu-se na região de Acari, adquirindo a propriedade Viração(²). Em poucos dias, fez vários amigos, entre os quais o violeiro Paulo Balá Bezerra(³), do sítio Pinturas Sagradas.
Jó da Silva e Silva adorava jantar coalhada com rapadura e visitar os novos amigos, aos domingos. Quase sempre, deliciava-se com as histórias narradas por Paulo Balá Bezerra, sobretudo quando o seridoense escavacava o passado(ª¹) iluminando trovões trovejantetetes(ª²) em invernos de outrora. Em outras ocasiões, Jó da Silva e Silva dirigia-se para o alto da Serra da Lagoa Seca. Um cenário paradisíaco, então, descortinava-se diante de seus olhos: a Serra do Bico da Arara, a Serra da Acauã, a Serra da Rajada, as águas do Gargalheiras. Tudo era paz. Tudo era felicidade. Tudo era aurora. E todos os dias, ouvindo as cantatas de Johann Sebastian Bach - que ainda não nascera -, Jó da Silva e Silva agradecia aos céus e orava ao Senhor das Alturas.
Mas eis que o Senhor das Sombras, com uma inveja danada daquela felicidade toda e daquele amor por um Ser intangível, desafiou o Senhor das Alturas, que em estado de sonolência se encontrava, brincando com as nuvens e os passarinhos: "Mestre, é muito fácil adorá-Lo quando se tem tudo e tudo vai muito bem, como é o caso desse tal de Jó Não Sei das Quantas. Se ele fosse um pobre coitado, e infeliz ainda por cima, por certo O amaldiçoaria". "Duvi-d-o-dó", respondeu o Todo Poderoso. "E por que não?", insistiu o Senhor das Interpretações(ª³). "Não estaria o Senhor acima do bem e do mal, do justo e do injusto, do verdadeiro e do falso?", continuou. E foi além: "Topas uma aposta?". "Como assim?", espantou-se o Senhor das Alturas. "Uma simples aposta, uma bobagem. Quero mostrar ao Senhor que o ser humano, mesmo o mais temente a Teus poderes, pode renegá-Lo", disse o Senhor das Sombras. "Mas que tipo de aposta?", impacientou-se a Suprema Singularidade do Universo.
E o Senhor das Sombras disse: "Preciso de apenas sete dias e sete noites para que ele passe a odiá-Lo. E então? Topas? Vamos apostar?" E o Senhor das Alturas ficou pensando, pensando, pensando. E pensando. Três meses depois respondeu: "Tudo bem, desde que o meu querido Jó não pereça através de suas diabolices". Mais um mês e o Magnífico, o Inclemente, o Intangível completou: "Apostemos 66 jumentos, 1000 quilos de queijo de manteiga e seis vacas leiteiras; terás sete dias e sete noites para fazer com que Jó mude radicalmente de opinião". "Só isso? Esperava que apostássemos algo mais glorioso", dessa vez quem se espantou foi o Senhor da Escuridão. "Só, e pronto. É pegar ou largar", disse o Senhor das Alturas. "Por que não acrescentamos, a essa jumentaiada toda, 66 virgens das mais formosas e cheirosas?", indagou o Senhor das Sombras. "Não!", respondeu secamente o Grande Chefe. O Senhor das Sombras insistiu: "Vamos fazer o seguinte: para mim, no caso de vitória, 12 jumentos, um quilinho de queijo, uma vaca e as 66 virgens; para o Senhor, se for o vencedor, os 66 jumentos, a tonelada de queijo, as seis vacas leiteiras, ou mais, se o desejar, e... 3.000 figurinhas do Padim Ciço. Que tal?"
(Continua)
(1767)
Jean Honoré Fragonard
BALAIO PORRETA 1986
n° 2672
Rio, 25 de maio de 2009
Jó é um dos personagens mais conhecidos da Bíblia. Ao mesmo tempo, é um dos caracteres mais complexos e as palavras que aparecem em seu livro amiúde são indecifráveis. A beleza literária do texto, escrito originalmente em hebraico e praticamente todo em verso, impressiona. O livro é obra de várias mãos e de várias tradições e lendas que se foram superpondo. Aborda o tema universal da dor e da justiça. Por que tem de sofrer o inocente? Pode existir um Deus incapaz de fazer justiça?
(Juan ARIAS. A Bíblia e seus segredos, 2004)
O LIVRO DOS LIVROS
(31a)
Texto estabelecido por Moatidatotatýne, o Escriba,
Eme Costa, o Ateu, e Josias F. Negreiros, o Gnóstico
O Livro de Jó da Silva e Silva
Justo, honesto, podre de rico, feliz, bem casado, sete filhos e sete filhas, apreciador de poesia, temente e fiel ao Senhor das Alturas, assim era Jó da Silva e Silva, cearense de Nova Russas e amigo de Mário Pontes(¹). A sua riqueza material, além de uma baita propriedade rural, abrangia 500 bois e vacas, 600 cabras e 500 jumentos e éguas. E de tanto ouvir falar na fartura, na religiosidade e na beleza do Seridó, em plena Capitania do Ryo Grande, para lá resolveu se mudar com a família. E assim o fez. Em lá chegando, estabeleceu-se na região de Acari, adquirindo a propriedade Viração(²). Em poucos dias, fez vários amigos, entre os quais o violeiro Paulo Balá Bezerra(³), do sítio Pinturas Sagradas.
Jó da Silva e Silva adorava jantar coalhada com rapadura e visitar os novos amigos, aos domingos. Quase sempre, deliciava-se com as histórias narradas por Paulo Balá Bezerra, sobretudo quando o seridoense escavacava o passado(ª¹) iluminando trovões trovejantetetes(ª²) em invernos de outrora. Em outras ocasiões, Jó da Silva e Silva dirigia-se para o alto da Serra da Lagoa Seca. Um cenário paradisíaco, então, descortinava-se diante de seus olhos: a Serra do Bico da Arara, a Serra da Acauã, a Serra da Rajada, as águas do Gargalheiras. Tudo era paz. Tudo era felicidade. Tudo era aurora. E todos os dias, ouvindo as cantatas de Johann Sebastian Bach - que ainda não nascera -, Jó da Silva e Silva agradecia aos céus e orava ao Senhor das Alturas.
Mas eis que o Senhor das Sombras, com uma inveja danada daquela felicidade toda e daquele amor por um Ser intangível, desafiou o Senhor das Alturas, que em estado de sonolência se encontrava, brincando com as nuvens e os passarinhos: "Mestre, é muito fácil adorá-Lo quando se tem tudo e tudo vai muito bem, como é o caso desse tal de Jó Não Sei das Quantas. Se ele fosse um pobre coitado, e infeliz ainda por cima, por certo O amaldiçoaria". "Duvi-d-o-dó", respondeu o Todo Poderoso. "E por que não?", insistiu o Senhor das Interpretações(ª³). "Não estaria o Senhor acima do bem e do mal, do justo e do injusto, do verdadeiro e do falso?", continuou. E foi além: "Topas uma aposta?". "Como assim?", espantou-se o Senhor das Alturas. "Uma simples aposta, uma bobagem. Quero mostrar ao Senhor que o ser humano, mesmo o mais temente a Teus poderes, pode renegá-Lo", disse o Senhor das Sombras. "Mas que tipo de aposta?", impacientou-se a Suprema Singularidade do Universo.
E o Senhor das Sombras disse: "Preciso de apenas sete dias e sete noites para que ele passe a odiá-Lo. E então? Topas? Vamos apostar?" E o Senhor das Alturas ficou pensando, pensando, pensando. E pensando. Três meses depois respondeu: "Tudo bem, desde que o meu querido Jó não pereça através de suas diabolices". Mais um mês e o Magnífico, o Inclemente, o Intangível completou: "Apostemos 66 jumentos, 1000 quilos de queijo de manteiga e seis vacas leiteiras; terás sete dias e sete noites para fazer com que Jó mude radicalmente de opinião". "Só isso? Esperava que apostássemos algo mais glorioso", dessa vez quem se espantou foi o Senhor da Escuridão. "Só, e pronto. É pegar ou largar", disse o Senhor das Alturas. "Por que não acrescentamos, a essa jumentaiada toda, 66 virgens das mais formosas e cheirosas?", indagou o Senhor das Sombras. "Não!", respondeu secamente o Grande Chefe. O Senhor das Sombras insistiu: "Vamos fazer o seguinte: para mim, no caso de vitória, 12 jumentos, um quilinho de queijo, uma vaca e as 66 virgens; para o Senhor, se for o vencedor, os 66 jumentos, a tonelada de queijo, as seis vacas leiteiras, ou mais, se o desejar, e... 3.000 figurinhas do Padim Ciço. Que tal?"
(Continua)
Notas:
(¹) Decerto, não se trata do escritor Mário Pontes, coincidentemente cearense, autor de Milagre em Salinas, livro de contos do século XX da Era Comum.
(²) Viração : o vento das cinco horas da tarde.
(³) Seria o mesmo o consagrado Paulo Bezerra, médico conceituado, autor de famosas cartas sertanejas para o cronista Woden Madrugador, publicadas na Tribuna do Nordeste, da Cidade dos Reys, e posteriormente transformadas em livro? Os teólogos e os autores de ficção científica ainda não chegaram a uma conclusão razoável sobre o personagem bíblico em pauta.
(ª¹) Escavacar o passado : Recordar o passado.
(ª²) Nota do tradutor: o texto original - em aramaico-tapuia-seridoense - indica um som onomatopaico-trovejante de difícil transliteração linguística. Há que reconhecer que houve perda de qualidade literária na transcriação da palavra "trohtrohtrohpykaparradahdahvah", cujo significado literal seria mais ou menos o seguinte: "trovões [que] trovoavam trovejando
trovas tremendamente tropicais". Ou resumindo: "trovões [que] arrebentavam as ouças" [isto é, "arrebentavam os ouvidos"]. Como se vê, procurou-se a solução mais simples, embora ligeiramente roseana.
(ª³) Pela primeira vez, em todo O Livro, o Senhor das Sombras é nomeado como Senhor das Interpretações: no Concílio São José do Seridó 1917 EC, debaixo do maior temporal, houve uma interminável discussão histórica dominada por várias tendências teológicas: a freudiana, a junguiana, a lacaniana, a althusseriana e a miguelciriliana, com suas respectivas propostas, em busca de uma compreensão mística de seu significado ontológico. Mas não houve acordo papal, a não ser em suas diretrizes básicas, que ficaram conhecidas como 'Apontamentos metafísicos para uma Nova Era': 1. Uma interpretação é uma interpretação é uma interpretação; 2. Se o Senhor das Sombras é um Senhor das Interpretações, tudo é possível; 3. Não se interpreta aquilo que não é para ser interpretado; 4. O Senhor das Sombras é um Não-Ser, um Não-Tempo e um Não-Nada: não há como interpretá-lo, a não ser, excepcionalmente, à luz de Goethe, Guimarães Rosa e José Bezerra Gomes.
(¹) Decerto, não se trata do escritor Mário Pontes, coincidentemente cearense, autor de Milagre em Salinas, livro de contos do século XX da Era Comum.
(²) Viração : o vento das cinco horas da tarde.
(³) Seria o mesmo o consagrado Paulo Bezerra, médico conceituado, autor de famosas cartas sertanejas para o cronista Woden Madrugador, publicadas na Tribuna do Nordeste, da Cidade dos Reys, e posteriormente transformadas em livro? Os teólogos e os autores de ficção científica ainda não chegaram a uma conclusão razoável sobre o personagem bíblico em pauta.
(ª¹) Escavacar o passado : Recordar o passado.
(ª²) Nota do tradutor: o texto original - em aramaico-tapuia-seridoense - indica um som onomatopaico-trovejante de difícil transliteração linguística. Há que reconhecer que houve perda de qualidade literária na transcriação da palavra "trohtrohtrohpykaparradahdahvah", cujo significado literal seria mais ou menos o seguinte: "trovões [que] trovoavam trovejando
trovas tremendamente tropicais". Ou resumindo: "trovões [que] arrebentavam as ouças" [isto é, "arrebentavam os ouvidos"]. Como se vê, procurou-se a solução mais simples, embora ligeiramente roseana.
(ª³) Pela primeira vez, em todo O Livro, o Senhor das Sombras é nomeado como Senhor das Interpretações: no Concílio São José do Seridó 1917 EC, debaixo do maior temporal, houve uma interminável discussão histórica dominada por várias tendências teológicas: a freudiana, a junguiana, a lacaniana, a althusseriana e a miguelciriliana, com suas respectivas propostas, em busca de uma compreensão mística de seu significado ontológico. Mas não houve acordo papal, a não ser em suas diretrizes básicas, que ficaram conhecidas como 'Apontamentos metafísicos para uma Nova Era': 1. Uma interpretação é uma interpretação é uma interpretação; 2. Se o Senhor das Sombras é um Senhor das Interpretações, tudo é possível; 3. Não se interpreta aquilo que não é para ser interpretado; 4. O Senhor das Sombras é um Não-Ser, um Não-Tempo e um Não-Nada: não há como interpretá-lo, a não ser, excepcionalmente, à luz de Goethe, Guimarães Rosa e José Bezerra Gomes.
10 comentários:
Finalmente, meu querido Moacy, vim ver esse balaio. Estava sem internet.
Beijos,
Maria Maria
Estava com saudade daqui.
Paciência de Jó?
Modelo de impaciência
para glória de Deus.
Moacy, bela glosa
do impaciente Jó,
flor do Seridó.
Um abração.
Bom Dia, Moacy!
Jó da Silva e Silva!!!! Figuraço!
Trovões em aramaico....amei!
Mas coitado do Jó! Nunca entendi porque sofrer tanto só para ensinar como é o verdadeiro amor à Deus! Pulo este livro!
No mais tudo perfeito!
Amei "O BALANÇO".
Beijos
Mirse
olha, que ainda preciso me atualizar... mas 3.000 figurinhas de Padim Ciço foi de lascar... ahahaha
pergunta: a nota a3 é verdadeira, né?
(sei que tudo por aqui baseia-se em fatos reais, mas esse realmente me chamou atenção)
beijos, Moa
Oi Moacy.
No início estranhei um duplo (!) Silva assim tão feliz, vivendo em meio à fartura material e à bonança espiritual. Como integrante do clã, sei que para os Silvas até recentemente viver era sinônimo de luta denodada, dor e sofrimento. Felizmente isto está mudando desde o advento da Era Lula, o Redentor. Bem, mas isto é assunto pra outra hora. O caso, aqui, é que tanta felicidade soava-me (hahãm, note a elegância do verbo) inverossímel (sentiu a galhardia da expressão?). O Senhor das Sombras, tudo indica, vai colocar a história nos eixos: ninguém é um Silva impunemente.
***
A escrita aramaico-tapuia-seridoense é um achado.
***
Um abraço e boa semana.
sim... a bíblia do moa...
Amigão
O resultado do Concurso de Anedotas já foi publicado no dia 23.
Não queres ir buscar o prémio?
Abraço fraterno
Botinhas
eita, eita, eita! Fico só imaginando o futuro dessas tendências teológicas.
bj garoto
Como Jó, só acredito vendo com os meus olhos esse "Livro dos Livros". rsrsrs
Abraços!
Lívio
p.s. O lançamento de seu livro deverá ser um grande acontecimento.
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