de Robert Crumb
BALAIO PORRETA 1986
n° 2855
Natal, 30 de novembro de 2009
Será que existe, na história do cinema,
um filme mais "demoníaco" do que
O bebê de Rosemary (Polanski, 1968)?
A BÍBLIA DE CRUMB
Rio de Janeiro, 1971: através das páginas da revista francesa alternativa Actuel, estabeleci o meu primeiro contato com os então quase desconhecidos comix, um dos ícones da contracultura americana, ao lado de outros símbolos que marcaram toda uma época, na música, no cinema, na literatura. E os quadrinhos que surgiam - HQs de Crumb, Shelton, Moscoso, e sobretudo Corben (este, dentro de uma perspectiva diferenciada) - me faziam repensar a grafia dos comics. Depois, o contato com a mitológica Zap, incluindo o seu famoso número "0", era mais do que um simples contato: era a descoberta de um novo mundo.
Por vários motivos, então, esperava-se com ansiedade o Gênsesis de Robert Crumb. E é verdade: o seu grafismo peculiar (com pinceladas neogrotescas e mulheres "avantajadas"), a sua sutileza temática e o seu clima eventualmente irreverente (na época da contracultura, muitíssimo mais irreverente) marcam presença, em partircular formatação gráfica. E uma adaptação de obra literária, sobretudo de uma obra literária tão complexa quanto o Gênesis, escrita por autores anônimos (entre os quais uma possível e misteriosa Javista), não é para qualquer um. Mas Crumb soube enfrentar o "o problema" com galhardia.
Só que, analisando de forma mais fria, de forma mais equilibrada, há também uma certa frustração: Gênesis está longe dos melhores momentos quadrinhísticos de Crumb. Seu grafismo, para quem conhece a obra crumbiana, já se faz repetitiva, sem a ousadia icônica dos velhos tempos; a leitura do primeiro livro da Bíblia é mais literal do que em princípio deveria ser (cf. o episódio de Sodoma e Gomorra); a própria figura de "Deus" é por demais "bíblica", é por demais "humana". Neste particular, o Mr. Natural, do próprio quadrinhista alternativo, era muito mais interessante. Resumindo: há, aqui, um "respeito" decepcionante ao texto original, apesar de certas variações pouco ou quase nada convencionais. Mas, a rigor, são variações tímidas. Enfim, o melhor Crumb ainda é o dos anos 60 e 70, quando realizou alguns quadrinhos antológicos.
Gênesis, de Robert Crumb. Trad. Rogério de Campos. São Paulo: Conrad, 2009, 226p.
A Biblioteca dos Livros Impossíveis (1/50)
A BÍBLIA DOS DEMÔNIOS de Santo Antão
Marcos Faria
[ in Almanaque ]
A origem deste manuscrito está ligada às tradições sobre a vida de Santo Antão no deserto.
Alvo de constantes tentações para que abandonasse a sua vida de santidade e mortificações, o eremita resistiu a todas. E fez mais: chegou a aprisionar alguns dos demônios enviados por Satã para tentá-lo. Acorrentou-os no fundo da caverna onde vivia e obrigou-os a copiar a Bíblia, letra por letra.
As poderosas orações do santo forçavam os diabretes a realizar a tarefa. Copiar fielmente a Sagrada Escritura era, evidentemente, uma tortura insuportável para os espíritos imundos.
(Pouco antes de morrer, orientado pelo arcanjo Miguel, Santo Antão libertou os demônios para que voltassem ao inferno em vez de ficarem vagando pela terra. Com isso, impediu também que eles conspurcassem o Livro após a sua morte.)
No entanto, Atanásio de Siracusa afirmou que do mal só pode vir o mal. Mesmo subjugados pelo santo, os demônios encarregados da tarefa teriam instilado sua perversidade nas páginas do Livro. Assim, quem o lê sempre interpreta erradamente as palavras divinas. No Concílio de Trento, houve mesmo quem afirmasse que foi a Bíblia dos Demônios que inspirou a Reforma a Lutero.
(DES)EMPATE
Líria Poto
[ in Tanto Mar ]
farinha do mesmo saco
pedaços do mesmo naco
bichos da mesma procedência
gente
mulher e homem
cachorro e gato
arremessa
ameaça
estremece
a minha pressa
não permite
ver o visto
sem ver o vasto
o que não remete
não me interessa
não me atiça
o que não existe
é relativo
se num dia me matam
no outro
já estou vivo
Houve um tempo em que líamos Herman Hesse. Não lembro dos grandes livros dele, O Lobo da Estepe, O Jogo das Contas de Vidro… Lembro de Sidarta, Demian e O Último Verão de Klingsor. Parece besteira, mas Hesse ganhou o Nobel de Literatura. Hoje isso não diz mais nada, porque a academia sueca sofre de esclerose mental. Pois bem, foi por causa desse cara que eu passei a ver a vida de modo diferente. Foi por causa dele que eu fui parar em Nietzsche. A partir daí meu olhar para o mundo ficou oblíquo, desconfiado. Leio Schopenhauer sempre com um sorrisinho sacana no canto da boca. Mas Klingsor foi fundamental para eu não ter medo da velhice e da morte. Tem dias que eu vivo as mesmas sensações do velho artista Klingsor brindando seu entardecer. Hoje, por exemplo, estou assim. Penso em Picasso vivendo seus últimos dias. Penso em Luís Buñuel no limiar da despedida. Não pensem que o que estou dizendo aqui, agora, é carta de náufrago. Não, estou apenas sentindo o bafejar do vento solar em minhas faces e dizendo, ora, não seja por isso, venha. Viver e morrer é o mesmo sintoma da viagem. Gente humana é travessia, dizia o grande João. Não é preciso temer isso. Só quem teme são os covardes. Às vezes tem gente que olha para mim e diz, creia em Deus homem. E eu digo interiormente, o que é que eu tenho a ver com a história antiga do povo judeu? O que é que muda meu olhar diante deste mar, só porque um beduíno queria poder e disse ter visto um anjo em sua tenda ditando normas para sua sobrevivência? Religiões que nascem de revelações não me dizem nada. Kant me diz mais coisas inquietantes. Spinoza também. Então essa felicidade que sinto ao ver o sol nascer é algo bastante necessário. Eu brindo o roçar dos dias pelas esferas da eternidade. Eu brindo aos amigos. Eu brindo a Klingsor e sigo em frente. Assim vivo bem melhor em meio a este torvelinho de estúpidos.