ALMANAQUE
Raimundo Nonato, em Figuras e tradições do Nordeste (1958, p.18), em carta para o natalense Veríssimo de Melo, relaciona alguns remédios caseiros que merecem ser lembrados, seja por simples curiosidade, seja porque são frutos da mais pura sabedoria popular, como, por exemplo:
[] Chá de lagartixa, para dor de garganta;
[] Banha de urubu, para erisipela;
[] Água de chocalho, para menino aprender a falar;
[] Mistura de vinagre, cachaça e goma, para dor de barriga;
[] Garapa de açúcar preto, para estancar o sangue;
[] Pó de caroço de pião, para dor de cabeça;
[] Café com pimenta malagueta, contra gripe;
[] Chá de grilo, para menino ficar falador.
BALAIO PORRETA 1986
nº 2027
Rio, 26 de maio de 2007
A BIBLIOTECA DOS MEUS SONHOS
666 livros indispensáveis (17/666)
Figuras e tradições do Nordeste, de Raimundo Nonato. Rio de Janeiro: irmãos Pongetti, 1958, 170p. [] Em capítulos quase sempre deliciosos, o mossoroense Raimundo Nonato refaz em tom memorialístico, qual jornalista do sertão, um mosaico de histórias, reais ou não, que fazem o homem do interior nordestino. Jagunços, professores, crônicas literárias, homens que falavam com espíritos, personagens da arte dramática em Mossoró – vasto é o painel das histórias contidas no livro. Algumas delas são hilárias, como a do cearense dono de caminhão que, “matuto habituado àquelas tramóias das estradas”, desconfiado que só a mulesta e cuidadoso extremado com o seu dinheiro, ao se hospedar em pensões pouco recomendáveis, costumava guardá-lo na própria roupa do corpo, ao dormir, envolvendo-se em lençóis e mais lençóis. Deu-se que, em certa ocasião, encontrando-se na cidade de Russas, devidamente hospedado, aconteceu o pior com o nosso amigo estradeiro:
“Madrugada alta, a pensão estava em polvorosa.
O barulho acordara todo o mundo.
O homem do dinheiro, apesar de toda a sua precaução, fora roubado, durante o sono. O ratoneiro bancou o sujeito educado. Deixou ao pobre diabo um cartão de visita, cujos termos valem uma peça:
-- Não o levo, também, porque não gosto de macho...”. (p.31-32)
A ave, de Wlademir Dias Pino. Cuiabá: Igrejinha, 1956. [Edição que pertence ao acervo do Poema/Processo.] A ave voa dentro de sua cor: codificação do espaço; codificação das cores -- semiotização do poema visual. É preciso lembrar: não se trata de um "vôo" figurativo, mas de um "vôo" que é grafia em estado bruto, em estado puro. Mais do que um poema-livro, um livro-poema -- antes das facilidades computacionais: o suporte material do objeto-poema, aqui, não é um mero suporte físico. Basta ver seus elementos composicionais: a textura do papel, a transparência de algumas folhas, as perfurações, os cortes, tudo faz parte da construção do livro-poema, com suas indicações gráficas, com suas indicações significacionais. Pois é, pois sim: entre os fundadores da poesia concreta, trata-se do nome mais importante, mais explosivo, em sua vertente semiótico-espacional. O fato é que, em 1967, A ave serviu de base para os estudos gráficos, metagráficos, semióticos e antiliterários que prepararam o terreno cultural para o lançamento em Natal e no Rio de Janeiro (com repercussões imediatas em Minas Gerais) do poema/processo, que explorava os conceitos de matriz e série, projeto e versão, especificidade do material e contra-estilo, procurando, com engenho e arte, espantar pela radicalidade, apostando na relação arte/política/história. Enquanto faziam o poema/processo, seus poetas, artistas e produtores se colocavam claramente contra a ditadura militar que dominava o país. No apogeu do movimento (1968/69), muitos foram os poetas que questionaram a poesia acadêmica, a arte museológica e, em inúmeras ocasiões, a política dos quartéis e dos coronéis.
Cadernos de João, de Aníbal M. Machado. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, 245p. [] Um livro singular dentro do panorama literário brasileiro, englobando, revistos e ampliados, os textos que compõem o ABC das catástrofes -- Topografia da insônia (1951) e Poemas em prosa (1955). Nascido em Sabará, MG, em 1894, e falecido no Rio, em 1964, o autor mineiro-carioca destacou-se como excelente contista desde Vila Feliz (1944). Segundo o crítico e ensaísta M. Cavalcanti Proença, "A narrativa de Aníbal Machado se desenvolve em terreno fronteiriço, ora pisando chão de realidade, ora pairando nas nuvens do imaginário, entre sonho e vigília, entre espírito e matéria, verdade e mentira, relatório e ficção". Aqui, mais do que nunca, através de pequenos relatos, aforismas inesperados, projetos de contos, substantivações de cunho surrealista, poemas em prosa, minidramas teatrais, o autor de João Ternura (1965) constrói um painel de emoções literárias à altura de qualquer biblioteca de bom gosto. Há textos que podem inspirar aberturas ontológicas para a utopia, como O transitório definitivo (p.40-43), quando se busca -- na maior tranqüilidade -- uma imaginária Santa Maria, castelo de passarinhos. Há textos que beiram a especulação filosófica e social: "Ninguém pode abrir sozinho o seu túnel pessoal para a claridade do dia, sem o risco de morrer sob os entulhos" (p.34). Há textos minúsculos que são esboços de teoria literária voltada para o campo da poesia: "Retira do teu poema as estridências do grito, se queres que ele tenha mais alcance e ressonância" (p. 78). Há poemas que são herdeiros do surrealismo, como a Última carta de Pero Vaz (p.106-08), realçando os bichos que roem o código das águas e a moça que foge dentro de um violão, e mais outras preciosidades, entre as quais "Prateleiras de luz se derramando no céu" e "Um rio morrendo de cansaço/ E navios de sombra/ A navegarem pela floresta". Sobretudo, não nos esqueçamos de suas Iniciativas (p.243-44), sempre delirantes, além de docemente líricas: "Faça o que lhe digo. Solte primeiro uma borboleta.// Se não amanhecer depressa, solte outras de cores diferentes.// De vez em quando, faça partir um barco. Veja aonde vai. Se for difícil, suprima o mar e lance uma planície.// Mande um esboço de rochedo, o resto de uma floresta.// (...) Atire um planisfério. Um zodíaco. Uma fachada de igreja. E os livros fundamentais.// Sirva-se do vento, se achar difícil.// (...) Mande uma manhã de sol, na íntegra.// Faça subir a caixa de música, com o barulho dos canaviais e o apito da locomotiva.// Veja se consegue o mapa dos caminhos”.
Viagem a Tulum, de Federico Fellini & Milo Manara. Rio de Janeiro: Globo, 1992, 84p. [] Uma das mais belas e delirantes histórias-em-quadrinhos da segunda metade do século passado, a partir de um argumento para filme (nunca realizado) e que seria adaptado com brilhantismo invulgar por Manara, o desenhista de algumas obras-primas das HQs, como a genial Sonhar, talvez. Na verdade, Fellini, que dirigiu Os boas vidas, Noites de Cabíria, A doce vida, Oito e meio, Amarcord e outros filmes de sucesso, sempre foi um entusiasta dos quadrinhos. Como Alain Resnais. Como Jean-Luc Godard. Neste caso, para início de conversa publicou através de folhetim (em 1986) uma história que pretendia transformar em cinema; como não o fez, já que cinematograficamente irrealizável, ou quase, permitiu que Manara a adaptasse com bastante liberdade para a linguagem dos quadrinhos, participando, inclusive, da elaboração do roteiro em alguns momentos da feitura dessa autêntica novela gráfica. O resultado final é admirável: em clima felliniano, entre a magia e o deslumbramento gráfico-seqüencial, os dois personagens principais (um senhor e uma jovem) visitam uma lendária Cinecittà, à procura do próprio Fellini, e nela encontram algumas figuras de suas obras, vivenciadas por Giulitetta Masina, Anita Ekberg, além, claro, Marcello Mastroianni. A rigor, a jovem não sabe se está vivendo uma aventura real ou se está dentro de um filme aparentemente sem o menor sentido. O fato é que, levada pelo chapéu do cineasta, se deixa afogar num lago artificial que contém mais elementos oníricos, numa viagem dionisíaca que seria sem lógica, para muitos e muitos. Aliás, é dentro do lago, marcado pelo simbolismo, que, num imenso avião, a jovem encontra Mastroianni, e mais uma vez Fellini. Quando o jumbo decola, com Mastroianni em seu interior, a história "decola". E um filme vai ser feito (por Mastroianni/Snaporaz como o diretor), com seus mistérios, suas fantasias, seus devaneios, suas impossibilidades, seus mitos quadrinhográficos, seus múltiplos caminhos que levam ao México e à sua cultura milenar. São muitas as referências e homenagens metalingüísticas em Viagem a Tulum, como, por exemplo, a Moebius (autor de outra instigante obra-prima dos quadrinhos: Arzach, visualmente excitante). Sem dúvida, navegamos em plena história por um beco sem saída temático, explicitado por aqueles que pensam o filme/quadrinho, como se o próprio cinema de Fellini, depois de anos, apontasse para algo indefinível, para algo indecifrável. No final, tudo parece ter sido um sonho, mas não se trata de um fim, e sim de um começo, ou recomeço, quando um novo e enorme avião aparece, do fundo do lago, voando para um inalcançável sistema de raízes criadoras além da imaginação visionária: uma imaginação que se desenha na película, mas também no papel. Algumas páginas são puro Manara redimensionando Fellini; outras, são puro Fellini sob a ótica gráfico-delirante de Manara, igualmente conhecido por seus quadrinhos eróticos de grande beleza visual. De certo modo, Viagem a Tulum é o último grande filme de Fellini, sendo, ao mesmo tempo, uma das grandes HQs de Milo Manara.