Cidadão Kane, de Orson Welles:o ícone dos ícones?O filme dos filmes?
BALAIO PORRETA 1986
nº 2142
Rio, 20 de outubro de 2007
OS ÍCONES CINEMATOGRÁFICOS
A idéia de ícone implica emblematização. Não significa necessariamente qualidade, embora possa figurar, no caso da arte, num determinado patamar estético capaz de resistir ao tempo. Quando pensamos no cinema, por exemplo, alguns ícones são evidentes. Outros são discutíveis. Sim, também aqui, é possível estabelecer divergências. Às vezes, um certo neblinamento pode sublinhar nossas opiniões. Mas fiquemos nos ícones mais claros.
Tomemos os musicais de Hollywood. Decerto, Cantando na chuva (Kelly & Donen, 1952) será lembrado pela maioria como o ícone por excelência. Seria o melhor musical realizado até hoje? Possivelmente, sim. Contudo alguns poderão preferir A roda da fortuna (Minnelli, 1953) em termos qualitativos. Ou Sinfonia de Paris (Minnelli, 1951). Ou Amor, sublime amor (Wise & Robbins, 1961). Por que não? Afinal, são quatro grandes filmes.
E no caso do bangue-bangue? Aqui, apontaríamos nomes: John Ford como diretor e John Wayne como ator. A reunião dos dois resulta em obras-primas como No tempo das diligências (1939) e Rastros de ódio (1956). Mas não há como esquecer Howard Hawks, igualmente com John Wayne em Rio Vermelho (1948) e Rio Bravo (1959). Ultimamente, a partir de várias revisões, Sergio Leone, sobretudo com Era uma vez no oeste (1968), tem-se destacado. Acreditamos que ele é mais do que um ícone do faroestespaguete.
Na comédia, claro, há que apontar Charlie Chaplin (Em busca do ouro, 1925; Luzes da cidade, 1931; Tempos modernos, 1936). Como realizador, preferimos Buster Keaton (Sherlock Jr., 1924; Seven chances, 1925; A General, 1927). Porém não devemos confundir as coisas. Não se trata de optar por um por outro; há espaço para os dois entre os "gênios do cinema". Além do mais, há outros grandes nomes no solo fértil da comicidade cinematográfica: O Gordo e O Magro, Jacques Tati, Billy Wilder (na comédia romântica).
E se falamos em comédia romântica, falemos em drama romântico. O grande ícone será Casablanca (Curtiz, 1942). Quem ousará discordar de? Todavia, segundo a nossa leitura crítico-afetivo-libertinária (com suas implicações ora semiológicas, ora seridoenses), Desencanto (Lean, 1945) continua sendo um filme insuperável. Um dos maiores da história do cinema. Ou, pelo menos, um dos maiores dos anos 40.
Um dos maiores ícones do cinema? E o maior de todos os filmes? Seria ele o ícone dos ícones em se tratando de estética cinematográfica? Talvez sim. Embora não seja o maior título da "sétima arte" - capaz de problematizar questões produtivas e culturais -, só um filme conseguirá se impor neste quesito: Cidadão Kane (Welles, 1941). Mas, afinal, qual seria o maior filme da história do cinema? Impossível apontar um título. De nossa parte, há muito que indicamos A aventura (Antonioni, 1960) como o melhor entre os melhores. E daí? Trata-se de uma escolha bastante pessoal, carregada, em nosso caso particular, de substância estética à beira da existencialidade e de um verdadeiro desnudamento ontológico. Afinal, "cada cabeça, uma sentença". Ou melhor: cada cabeça, uma emoção.
Outros ícones? O do cinema político (Eisenstein, Vertov, Godard, Glauber Rocha)? O do film noir (Preminger, Wilder)? Do cinema documentário (Flaherty, Eduardo Coutinho, Vladimir Carvalho)? Há mais ícones: Mário Carneiro, símbolo da fotografia em nosso cinema. Visconti e Rossellini, emblemas do neo-realismo italiano; 2001: uma odisséia no espaço (Kubrick, 1968), o representante mais completo da ficção científica; Oscarito, símbolo da chanchada carioca. E o que dizer de um Fellini? Ícone de um cinema-bailarino (reportando-nos a Welles, em A ricota, curta de Pasolini)? E o que dizer do cinema Boca-do-Lixo - qual o seu ícone? Qual o seu nome mais legítimo?
A verdade é que sempre haverá discussões a respeito. Como assinalar, por exemplo, o ícone da beleza/sensualidade feminina nas telas do cinema mundial. Ingrid Bergman? Rita Hayworth? Maria Félix? Sophia Loren? Marilyn Monroe? Brigitte Bardot? Ava Gardner? Atrizes mais recentes? Brasileiras? Argentinas? Chilenas? De qualquer maneira, mais vale a mulher amada do nosso lado, olhando para os nossos olhos, do que duas ou três na imaginação a mais delirante. Mesmo que sejam belíssimas. Afinal, de forma concreta, e próxima, a mulher amada também será belíssima. Ou mais.
Não nos esqueçamos que, fora do campo cinematográfico, são muitos os ícones do século XX: Einstein, em ciência; Picasso, em pintura; Che Guevera, em rebeldia revolucionária; Gaudí, em arquitetura; Sartre, em existencialismo; Bachelard, em epistemologia; Fla-Flu (e/ou Pelé, e/ou o Maracanã), em futebol; Cartier-Bresson, em fotografia; Brecht, em teatro; Maiakóvski (e/ou Fernando Pessoa), em poesia; Guimarães Rosa (e/ou Joyce, e/ou Kafka), em literatura ficcional; Stravinsky, em música; Câmara Cascudo, em folclore; Freud, em psicanálise; Joãozinho XXIII, em religiosidade católica; Lênin, em política revolucionária. E há aqueles símbolos alimentados pela indústria capitalista: a Parker 51, o cadilaque, a coca-cola (essa última não nos interessa, a bem da verdade). Seriam símbolos inúteis? Não, não existem símbolos inúteis ou, mais precisamente, leituras inocentes (cf. Louis Althusser).
Há, ainda, uma pergunta final a ser formulada: o ser humano necessita de ícones? Quer nos parecer que sim. Assim como necessita de mitos religiosos que requerem a criação histórico-ficcional de um Deus judaico-cristão-muçulmano.