quinta-feira, 28 de agosto de 2008


Clique na imagem
de
Andy Warhol
para ver o curta/animação
Mona Lisa descending a staircase
(Joan Gratz, 1992)


BALAIO PORRETA 1986
n° 2412

Rio, 28 de agosto de 2008

Toda época deve reinventar seu próprio projeto de "espiritualidade".
(Susan SONTAG. A vontade radical, 1969)


Repeteco
BALAIO INCOMUN n° 1598
Desde 8 / 9 / 1986
Rio, 27 de setembro de 2005


A ESTRADA
Moacy Cirne

Sinto o primeiro impacto. De imediato, sou dominado por inesperada quentura nas costas. Mas consigo correr. E corro. Um segundo impacto me atinge. Preciso correr, mais ainda. Um rio me aguarda, à esquerda. Mergulho nele. Suas águas me envolvem com certa doçura. Mas de onde surgira aquele rio, em plena Glória, entre a Lapa e o Catete? Não importa; o que importa é que estou a salvo. O calor aumenta. Ouço os sinos da igreja mais próxima. Uma voz de rapariga me chama. Ambrósio, Ambrósio, cuidado com a ponte, não se deixe enforcar. O fogo me queima por dentro. Não sei nadar, lembro-me de repente. O que está acontecendo, então? Só sei que não existe mais qualquer sinal de rio; estou numa estrada de tijolos amarelos, familiar cena de filme antigo. Caminho com passos lentos; o calor que me domina é intenso. Pressinto que minhas roupas estão encarnadas. E encarnado é o meu cordão, em disputa contra o cordão azul. Sou uma criança apaixonada pela rainha do Encarnado na cidade da minha infância. Carlitos, o Gordo e o Magro me fazem companhia, sorrindo. Durango Kid aproxima-se: Não se preocupe, estou aqui para defendê-lo dos bandidos. Estou aqui para salvá-lo das balas perdidas. Confie em mim. Olho para o meu avô, com sua ternura sem fim. No caminhão da feira, cortando o cheiro da manhã carregada de mangas e esperanças, contamos os jumentos à beira da estrada, a mesma estrada de tijolos amarelos. À esquerda e à direita vemos jumentos tristes e honestos. São dezenas, são centenas deles. Estranho, parecem pássaros que não sabem voar. Quem ganhará a aposta? O feirante bêbado de auroras garantindo que à direita do veículo, beirando a estrada, maior seria o número daqueles pobres e inevitáveis animais? Ou vencerá o outro? O outro não sou eu; eu sou aquele que precisa mergulhar no Poço de Santana, no final da estrada. Mas o Poço está longe, muito longe. Nunca fiz um filho. Nunca plantei uma árvore. Nunca escrevi um livro. Nunca entrei num túnel tão comprido. E as coisas estão ficando cada vez mais nebulosas. Além, já noite, do alto do coreto da praça, Luiz Gonzaga acena para mim. Asa branca, assum preto, légua tirana. Baião-de-dois. Baião-de-três. Baião-de-cinco. O império submarino. Flash Gordon no Planeta Mongo. A volta do Aranha-Negra. Sansão e Dalila. Nunca houve uma mulher como Gilda. Os melhores anos de nossas vidas. Belinda. O barco das ilusões. Amar foi minha ruína. Dois palermas em Oxford. Paraíso proibido. Tarzan e as amazonas. O império das ilusões. O Aranha-Negra no Planeta Mongo. Sansão, Gilda, Belinda e Dalila. Nunca houve uma mulher como Tarzan. Estou cansado. O chão da Glória tem gosto de sangue e sertão. Preciso dormir.

15 comentários:

Anônimo disse...

A estrada, do meu escritor preferido: Moacy Cirne, porreta que só!!

Anônimo disse...

Bela prosa poética! Já conhecia. Eliene, inclusive, já havia publicado no ACCAS na Net.

Anônimo disse...

Isso é que chamo de surto poético dos bons! Durma, mas não se assuste com os aplausos!
Depois de ler todos os posts que perdi (eu vivo perdendo e me perdendo) volto a concluir: quem tem alguma pretensão literária (e os blogs estão cheios de pretensos) deveria pousar aqui. Tanta coisa boa junto não é em qq lugar que se encontra.
Beijoaí!

benechaves disse...

Moacy: já conhecia este texto que faz uma mesclagem com cinema, quadrinhos e suas 'inquietações' literárias.

Um abraço...

dade amorim disse...

Caramba, Moacy. Quem sabe mais, surta mais bonito :)

Beijo beijo

Jens disse...

Bravo, Moacy, bravo! Mais e mais!
***
O vídeo também é sensacional.
***
PS: lembrei de uma música do Ednardo onde ele diz que, no meio da estrada, sem saber onde chegar, a gente, com um sorriso besta, fica querendo que tenha um marco zero pra poder recomeçar.
***
Arriba, camarada. Um abraço.

Anônimo disse...

parafraseando josé agripino de paula e caetano veloso - panaméricas e seridós utópicos, ainda não havia para mim moacy, a sua mais concreta tradução, alguma coisa noir com/tece o meu coração...

Anônimo disse...

conhecendo seu blog agora, moacy. mas que beleza, vou visitar mais. beijos.

o refúgio disse...

Danado de bom, Moacy!
Escreva mais, escreva mais!
Beijos.

Dilberto L. Rosa disse...

Genial balaio idílico, amigo Moacy, bom te ver realmente por aqui... Mas a citação também foi ótima e apropriada: viva os minutos eternos de Warhol! Abraço!

Francisco Sobreira disse...

Me lembrava do seu texto. Gostei daquela vez e continuo gostando, caro amigo. Um abraço.

Douglas disse...

Balaio é porreta. E encarnado!
Douglas.

Beti Timm disse...

Moacy,
como de praxe as letras aqui fazem um baile de maestria e soberania. Mestre, quem com voce dança, dança na alma e no saber. Durma o sono dos Deuses! Você mererece! Beijos e continuo na sua pegada

Flávio Corrêa de Mello disse...

Olá Moacy,

Viajar na cama. Ir até onde as imagens afetivas estão e suar no leito do rio de janeiro. Bacana demais. Bons sonhos!

Potiguarando disse...

Durango Kid obrigou minha mãe a costurar luvas de cowboy pra mim, ao meu pai a comprar cinto, cartucheira e até revólver de plástico. Faltaram apenas chapéu e cavalo. Foi no tempo que sumiram a vasoura e a aba de um velho boné...
Belo texto e obrigado por ter nos acompanhanhado pela Rio Branco. Abraço forte.