sábado, 31 de janeiro de 2009

FILMES QUE MARCARAM ÉPOCA
NA CAICÓ DOS ANOS 50
Clique na imagem
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os sete minutos finais de
Sansão e Dalila
(De Mille, 1949),
com Hedy Lamarr e Victor Mature


BALAIO PORRETA 1986
n° 2554
Rio, 31 de janeiro de 2009

Sansão e Dalila é um dramalhão bíblico de terceira categoria. Mas tenho um carinho todo especial por ele. E vários são os motivos que me fazem apreciá-lo, sob a perspectiva da memória que (ainda) não se perdeu no tempo. Vejamos: 1] Foi o primeiro filme que, em Caicó, por volta de 1953 ou 54, rompeu a barreira das três projeções (uma por dia), sendo apresentado seis vezes, com as 298 cadeiras do Pax, na Praça da Liberdade, sempre ocupadas; 2] Foi o primeiro filme "nobre" a ser lançado na sessão do sábado, normalmente reservada para faroestes, policiais, aventuras de Tarzan e/ou comédias, complementada por um capítulo do seriado da vez; 3] Das seis sessões, vi cinco, só tendo faltado à exibição da terça-feira; 4] Foi o filme que inaugurou, em Caicó, as sessões matinais, aos domingos; 5] Foi o primeiro filme que mobilizou caravanas das cidades vizinhas apenas para vê-lo, suspirando pela canção-tema: "Vai, pecadora sensual...". E como eu era uma criança muito volúvel em termos cinematográficos - apaixonado que era por Esther Williams, Maria Felix, Ninon Sevilla, Jean Peters e Ava Gardner -, também me apaixonei por Hedy Lamarr, a bela Dalila (só muito depois, no Rio, vi a sua beleza nua em Êxtase). E mais uma vez afirmo: "Sansão e Dalila é o meu pior filme de estimação". Já o vi umas 10 vezes, contando com as cinco sessões em Caicó, claro.


CINEMA 2009

Por que perder tempo com filmes oscarizáveis se, no momento, vejo e revejo A mãe e a puta (Eustache, 1973), O diabo, provavelmente (Bresson, 1977), Antígona (Straub & Huillet, 1991), Os proscritos (Sjostrom, 1919), além de dois vídeos recentes de Marcelo Ikeda (Em casa e Êxodo)? Todos eles serão comentados na próxima semana.


ESPELHO
Bosco Sobreira
[ in A Pedra e a Fala ]

Vez ou outra
eu me pego
espiando pelas frestas
de minha alma
e me surpreendo:

Há sempre um sol brilhando
intenso
(tão docemente intenso)
quando chove aqui fora


CUMAÉQUIÉMESMO?

Nem só de sexo, erotismo e putaria vive o Balaio, pelo menos segundo o Google, considerando-o como ferramenta de pesquisa (tanto ou quanto aleatória, pra falar a verdade, muitas vezes ensandecida). Um leitor/internauta interessado na poesia clássica coreana - mais conhecida como sijô - consultou o Google. Pois é, em 2.370.000 - repito: 2.370.000 - opções possíveis, a empresa multinacional indicou o Balaio em honroso 7º lugar. Eis o número que mereceu a inesperada honraria:

BALAIO PORRETA 1986
n° 2195
Rio, 26 de dezembro de 2007

A BIBLIOTECA DOS MEUS SONHOS

Sijô - Poesiacanto coreana clássica, antologia. Trad. Yun Jung Im & Alberto Marsicano. Int. Haroldo de Campos. São Paulo : Iluminuras, 1994, 142p. [] Até então, anos 90, praticamente não conhecíamos a poesia coreana: uma poesia delicada. Em sua língua original, o Sijô compõe-se de três versos e cerca de 45 sílabas. Na recriação brasileira, a formatação será outra, necessariamente: os versos transformam-se em blocos formais. O fato é que o Sijô, como tal, consolida-se no final do século XIII. Para o estudioso Kevin O'Rourke, citado por Haroldo de Campos na apresentação, "ler o Sijô é viver e respirar a história e a cultura da Coréia" (p.11).

Sijô
de

Bag Peng-nyón
(1417-1456)

Dizem que o ouro
se encontra em águas claras
Mas nem toda água clara
o guarda

Dizem que o jade
se encontra nas montanhas
Mas nem toda montanha
o guarda

Dizem que o amor é o mais importante
Mas podemos buscar
a todos que amamos?
(p.26)

Sijô
de
Ju Üi-shig
(?-?)

O menino à janela
vem e me diz:
É o sol
do Ano Novo

Abro a janela
que dá para o leste
e vejo sempre
o mesmo sol

Menino: Este é o velho sol de sempre
Venha-me chamar
quando surgir um novo
(p.119)

Nota 2009:
Como ilustração do número,
uma bela imagem da Coréia do Norte.
Ou seria da Coréia do Sul?

sexta-feira, 30 de janeiro de 2009


Romance da moça misteriosa
que, influenciada pela magia
dos versos de Luís Carlos Guimarães,
mergulhou no Poço de Santana,
em Caicó,
e desmergulhou no Poço da Bonita,
em São José do Seridó

Poema/Processo de
Moacy Cirne
a partir de foto
de
Rodrigo Nunez
( devidamente redimensionada )


BALAIO PORRETA 1986
n° 2553
Rio, 30 de janeiro de 2009

Como posso caminhar tão só, se meus segredos
enchem um mundo?
(Adriana Monteiro de Barros, in Pianos invisíveis, 2008)


SAGRAÇÃO DO VERÃO
Luís Carlos Guimarães
[ in A lua no espelho. Natal, 1993 ]

De repente a mulher desabrochou nua
saindo do mar, pois a água não a vestia,
antes a desnudava, fazendo a sua
nudez mais nua à dura luz que afia
seu gume no sol da manhã que inaugura
o verão. Dezembro só luz reverbera
em seu corpo, doura-lhe as coxas, fulgura
nas ancas, no dorso ondulado de fera.
Fera que guarda no ventre uma colmeia
com a flor em brasa do sexo que ateia
fogo ao meu desejo e tanto me consome
a vulva, gruta, rosa de pêlos - que nome
tenha - que desfaleço como se em sangue
me esvaísse morrendo de amor. Exangue.


ESTAÇÃO
Mariana Botelho
[ in Suave Coisa, em 11/12/2008)

tenho um outuno no corpo
de onde as
coisas
caem

vejo doçura nas roupas
espalhadas
pelo
chão


ELEGIA PARA ZILA MAMEDE
Luís Carlos Guimarães
[ in O fruto maduro. Natal, 1996 ]

Sabias que morrerias no mar.
Assim seria, disseste sem medo
em canção e elegia. Acreditar
só acreditamos quando tão cedo

partiste: a morte - como anunciada -
boiava à deriva no corpo morto
e pela luz da manhã revelada
lançou a âncora no último porto.


REBULIÇO
de Renato Caldas
[ in Fulô do mato,
republicado em Versos sacânicos. Natal, 2003 ]

Menina me arresponda
Sem se ri e sem chorá:
Pruque você se remexe
Quando vê homem passá?
Fica toda balançando,
Remexendo, remexendo...
Pensa, talvez, qui nós, véio,
Nem tem ôio e nem tá vendo?
Mas, si eu fosse turidade,
Si eu tivesse argum valô,
Eu botava na cadeia
Esse teu remexedô...
E, adespois dele tá preso,
Num logar, bem amarrado,
Eu pedia: - Minha nega,
Remexe pru Delegado...

Nota do Balaio:
Renato Caldas, poeta popular norte-riograndense,
nasceu em 1902 e faleceu em 1991.

quinta-feira, 29 de janeiro de 2009


Imagem: Relnoy
in
PhotoDom


BALAIO PORRETA 1986
n° 2552
Rio, 29 de janeiro de 2009


Desde os primórdios, a Bíblia não teve uma mensagem única. Quando os editores fixaram os cânones dos testamentos tanto judaico quanto cristão, incluíram visões concorrentes e puseram-nas, sem comentário, lado a lado. Desde o princípio, autores bíblicos sentiram-se livres para rever os textos que haviam herdado e deram-lhes significados inteiramente diferentes. Exegetas posteriores apresentaram a Bíblia como um modelo para os problemas de seu tempo.
(Karen ARMSTRONG. A Bíblia; uma biografia, 2007)


O LIVRO DOS LIVROS
(5)
Texto estabelecido por
Domingos Bouzon Garmus & Luís Pereira Ramos

A história de Zeferino Cabeção, o Profeta

E os homens se multiplicaram. Multiplicaram-se os homens. E eis que, de Serra Negra, nas proximidades de Caicó, surgiu Zeferino Cabeção, descendente de Ribamar, Toré e Biró, Piromba, Jorginho e Alberi Goleador, Peri das Oiticicas, Dinarte Matrícula e José Lucas do Serrote. Zeferino Cabeção, ao completar 69 anos, vendo que os homens viviam uma vida muito chata, e acreditando nas Palavras do Senhor das Alturas, resolveu chamá-Lo para uma conversa de homem para homem, de cabra macho para cabra macho.

O Senhor das Alturas disse então a Zeferino Cabeção: "Sai de tua terra, de tua parentela, menos a esposa e as filhas, da casa de teu pai e vai para a terra que te mostrarei. Farei de ti um grande povo e te abençoarei, engrandecendo teu nome de modo que se torne uma benção e um Profeta, o primeiro entre os primeiros, o primeiro entre os mais puros, o primeiro entre os seridoenses".

Mas Zeferino Cabeção respondeu-lhe: "Que eu seja um Patriarca, tudo bem... Mas Profeta? O Senhor ficou lelé da cuca? Não teria perdido o juízo não, Senhor das Alturas? Toda essa eternidade sem a menor graça deve lhe fazer um mal danado. Afinal, Profetas serão Isaías do Mundo Novo, Jeremias das Lamentações, Ezequiel da Solidão, Daniel da Pedra Lavrada, Jonas da Baleia Branca, Zacarias de Timbaúba, Malaquias de Jucurutu, Gentileza da Praça Quinze. Serei Patriarca - e ponto final - como patriarca será Moisés o Libertino. Não profetizarei que o Brasil perderá a Copa do Mundo de 50 em pleno Maracanã. Não profetizarei que o Cinema Nordeste, na Cidade dos Reis, será inaugurado em dezembro de 1958 da Era Comum. Não profetizarei que o homem conquistará a Lua no final dos anos 60 e que haverá, entre os jovens, um movimento chamado contracultura. E que, bem antes, haverá uma mulher revolucionária de nome Rosa Luxemburgo".

E mais disse: "Não profetizarei que As pelejas de Ojuara, livro escrito por um descendente dos tapuias, causará sensação. Que Eu Sou o Senhor da Cruz e Chiquim de Assis serão homens generosos e compreensivos. Que, em política, a direita será truculenta e a esquerda, ingênua. Que o racismo, o fascismo e o pseudomoralismo serão a expressão maior da intolerância e da doença mental. Que Assuntina das Amérikas será um filme incompreendido. Que o Senhor será questionado pelos cientistas do futuro. E mais não direi; não sou profeta, nunca fui".

E o Senhor das Alturas disse: "Homem, deixe de lengalenga e frescura, não importa se profeta ou patriarca, vá pegar sua trouxa e procure o seu destino a ser por mim indicado. E também, pelo sim pelo talvez, não seja um besta de cagar rodando. Quem avisa, amigo é". E Zeferino Cabeção partiu, como o Senhor das Alturas lhe havia dito, rumo ao Vale do São Francisco, na terra compreendida entre Pernambuco e Bahia. E o Senhor das Alturas apareceu a Zeferino Cabeção e lhe disse: "À tua descendência darei esta terra, mesmo contrariando alguns latifundiários poderosos".

Para evitar conflitos com os donos da terra, Zeferino Cabeção fez com que sua mulher se passasse por irmã e a eles se entregasse de corpo e alma. Houve porém uma grande seca na região, que durou 4 anos e 77 dias, a todos prejudicando. E Tonico Carlos Beleza, governante das terras baianas, e outros proprietários, supersticiosos, acharam que a culpa era dele, com aquela mania besta de adorar um só Senhor. Aconteceu, pois, que ele e sua família foram expulsos pelos capangas do poderoso Tonico para mais longe ainda, para as minas interioranas dos campos gerais, território governado por Riobaldim Diadorão, que gostava de enfrentar o Astucioso no meio do redemunho e passava o tempo todo a exclamar: "Viver é muito perigoso! Viver é muito perigoso".

E o Senhor das Alturas a todos cubava. E as alianças se faziam. E os nascimentos se davam. E as promessas se concretizavam. E as tentações se sucediam. E a cada novo baião-de-cinco mais e mais Zeferino Cabeção mostrava o seu valor de patriarca e cabra da peste. E aconteceu que Zeferino Cabeção arrependeu-se de sua vida devassa, orou com sincero fervor, e voltou, com sua mulher e suas duas filhas, para o Vale do São Francisco. A seca já acabara; torres alegravam os horizontes. As auroras pareciam mais cristalinas do que nunca.

Em lá chegando, Zeferino Cabeção procurou abrigo entre duas cidades, às margens do Rio do Chico, conhecidas por Axé Musiqueta e Gonorréia. Seu povo vivia na maior putaria: para todos os lados era possível encontrar uma, duas, três chibateiras, puaras das mais atrevidas, assim como homens rapariguentos de todas as espécies. E Zeferino Cabeção mais e mais orava. E o Senhor das Alturas continuava cubando. E não gostava do que via.

Próximo capítulo:
Zeferino Cabeção, a destruição de
Axé Musiqueta e Gonorréia
e outras histórias

Nota dos Editores d'O Livro dos Livros -
Besta de cagar rodando : sujeito inconveniente; bobo
Cubá : olhar de forma atravessada
Baião-de-cinco : sexo grupal
Torres : nuvens carregadas de chuva, prenunciando o inverno
Chibateira : prostituta
Puara : prostituta
Rapariguento : raparigueiro; mulherengo

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Foto
do
Retroatelier





















BALAIO PORRETA 1986
n° 2551
Rio, 28 de janeiro de 2009

O artista deve fazer com que a posteridade pense
que ele não existiu.

(FLAUBERT. Correspondência, 1842)


POEMA
Carito
[ in Os Poetas Elétricos ]

sol de janeiro
com ventos de agosto
lá em cima paisagem de monges.


POEMA de
CHICO DOIDO DE CAICÓ
[ in Balaio, n° 543, 13/09/1993 ]

Passei o dia todo de caneta na mão
Pelejando pra fazer um verso de amor
E a única coisa parecida com verso de amor
Que saiu da porra da minha caneta foi:
Rosinha, Rosa, Rosa de Sousa
Eu gosto mais de você do que da sua bunda.

HUMOR NATALENSE
Registrado por Veríssimo de Melo, em 1959:

Antigo proprietário em Estremoz [ao lado de Natal], Carmelo Pignataro tem muitas estórias pitorescas de boêmia e cachaça. Ouvi contar que, uma noite, Carmelo chegou em casa pelas três horas da madrugada. Vinha de uma farra grossa. Como é lógico, sua exma. esposa recebeu-o contrariada e reclamou:
- Agora, Carmelo? Três horas da madrugada?
Ao que ele contestou:
- Três horas, não! Uma hora da manhã!
Por coincidência, no mesmo instante, o relógio da parede bateu as três horas fatais.
A senhora, vitoriosa, exclamou:
- Eu não disse que eram três horas?
Carmelo teve ainda esta saída genial:
- Mas, minha mulher, você deixar de acreditar em mim, que sou seu marido, para acreditar num simples relógio de parede!...

[ in Pequena antologia do humor natalense, de Veríssimo de Melo. Natal: Sebo Vermelho /2a. ed./, 2003 ]

POEMA
de
Cláudia Castanheira

Que homem é esse
Que só vem de vez em quando
E que me deixa esperando
Com essa falta de ar

Que bicho é esse
Que não trepa
Não me come
Mas que tanto me consome
Sem saber o que pensar

Que homem é esse
Com essa sede de amasso
Que me toma nos seus braços
Num impulso do sentir

Que homem é esse
Que me vem fora de hora
Sem espera, sem estória
E me impede de partir...

[in Balaio, nº 302, 10/7/1991]


terça-feira, 27 de janeiro de 2009


Foto
do
Retroatelier


BALAIO PORRETA 1986
n° 2550
Rio, 27 de janeiro de 2009

Quando a natureza excede a cultura, temos o rústico.
Quando a cultura excede a natureza, temos o pedante.
(CONFÚCIO [552-470 ac], in Analecta)


DAS CONTAS
Ademir Antonio Bacca
[ in O relógio de Alice ]

Sei
da vida
que me foge
aos poucos
todas as noites

sempre acordo
com a sensação
de que esta está me faltando
um dia.


ALBERI
Celso da Silveira
[ in Tempo de rir, 1984 ]

Quando perguntaram a Alberi, jogador do ABC [Natal], se ele aceitava uma proposta para se transferir para o América,
ele respondeu:

- Pode ser, pode não ser, quanto mais principalmente.


Memória das eleições passadas,
em Parnamirim, ao lado de Natal.
Mas a Dona Lurdí Jipão não se elegeu...

ALMANAQUE

Raimundo Nonato, em Figuras e tradições do Nordeste (1958, p.18), em carta para o natalense Veríssimo de Melo, relaciona alguns remédios caseiros que merecem ser lembrados, seja por simples curiosidade, seja porque são frutos da mais pura sabedoria popular, como, por exemplo:
[]
Chá de lagartixa, para dor de garganta;
[]
Banha de urubu, para erisipela;
[]
Água de chocalho, para menino aprender a falar;
[]
Mistura de vinagre, cachaça e goma, para dor de barriga;
[]
Garapa de açúcar preto, para estancar o sangue;
[]
Pó de caroço de pião, para dor de cabeça;
[]
Café com pimenta malagueta, contra gripe;
[]
Chá de grilo, para menino ficar falador.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2009


A Torre de Caicó,
vulgarmente conhecida como
A Torre de Babel,
segundo os delírios de
Pieter Bruegel,
em 1563


BALAIO PORRETA 1986
n° 2549
Rio, 26 de janeiro de 2009

É preciso lutar, sonhar, querer!
(Muros da Cinelândia, Rio, final dos anos 70)


O LIVRO DOS LIVROS
(4)
Texto estabelecido
pela
Assembléia dos Deuses Seridoenses
com a supervisão de
Olavo Madeira Que Cupim Não Rói

A Torre de Caicó

Os mais antigos ainda se lembravam da Biblioteca de Babel. Toda a terra usava uma só língua, a tapuia, com seu palavreado rascante e quase sem vogais, com raras exceções, sobretudo para os nomes das pessoas e dos lugares. E belos eram os nomes dos lugares. E poéticos eram seus nomes. Quixeré boquixeré era Riacho da Serra Brava; Quexoidi, Campo da Pedra; Quimaycoco, Pedra Brava; Utrebetukuam, Riacho Escuro; Cucuray, Poço d'Água Fria.

Mas ainda não existia a palavra califon, nem a expressão "a merda que virou boné"; não existia a palavra bangalafumenga, nem a expressão "acabar-se na mão"; não existia a palavra baitola, nem a expressão "boca da noite"; não existia a palavra granvanha, nem a expressão "bucho furado"; não existia a palavra papudinho, nem a expressão "cair nas águas". Não existiam outras palavras, outras expressões não existiam. "Casado na igreja verde", então, nem pensar.

E aconteceu que, partindo de vários lugares, em direção ao Seridó, como antes já ocorrera, os homens acharam a Caatinga Grande, e lá se estabeleceram, e lá disseram: "Vamos fazer tijolos e cozinhá-los ao fogo, descoberto pelos ancestrais de Caicó, e aproveitar as muitas pedras da região". E assim fizeram, no rumo de Queicuó e do Poço de Santana. E começaram a dividir as terras e os bois de forma desigual. Uns poucos ficavam com muito; a maioria não ficava com nada.

Mas havia aqueles que não se esqueciam dos ensinamenos dos livros proibidos nas primeiras eras do Jardim do Seridó. Rosembergue das Amérikas e Sindoval Rodrigo do Grajaú eram dois deles. Insatisfeitos com a situação do mundo, uniram-se e com a ajuda de operários, camponeses, estudantes, atrizes do teatro alternativo e do teatro rebolado, e atores e técnicos da chanchada nacional, resolveram construir uma torre nas proximidades de Caicó capaz de alcançar as nuvens e o Senhor das Alturas. "Vamos construir para nós uma nova Queicuó e uma torre que chegue aos céus, para mostrar ao Senhor das Alturas os seus erros ao criar a terra com tantas injustiças e tanta gente exploradora e medíocre".

Mas o Senhor das Alturas não gostou do que viu. E o Senhor das Alturas disse: "Eis que eles formam um só povo e todos falam a mesma língua. Isto é apenas o começo de suas fantasias. Agora nada os impedirá de fazer o que se propuserem. Vou descer e confundir-lhes a língua, de modo que não se entendam uns aos outros". E com seu poder diabólico o Senhor das Alturas fez com que a língua tapuia por todos falada e compreendida se multiplicasse em várias línguas para que os homens não mais se entendessem e abandonassem a construção da torre. E assim surgiram outras línguas. E assim surgiram outros modos de expressão: o seridoense, o tupi-guarani, o quichua, o náhuatl, o carioquês, o paulistês, o baianês, o pernambuquês, o gauchês, o mineiro-uai, o sânscrito, o quicongo, o quimbundo, o iorubá, o latim, o árabe, o espanhol, o grego, o franco-italiano, o joyceano, o roseano e outras línguas menos conhecidas, como a inglesa e a alemã.

E os habitantes do Seridó desistiram da Torre. E os os habitantes do Seridó mais ainda se espalharam por outras terras e conheceram outras gentes. E os habitantes do Seridó passaram a cultuar a Senhora de Sant'Anna, avó de Eu Sou o Senhor da Cruz, de origem franco-judaico-palestina, parente em primeiro grau do Senhor das Alturas. E a Senhora de Sant'Anna era doce e compreensiva. E a Senhora de Sant'Anna era amiga e companheira. E a Senhora de Sant'Anna não carregava água em balaio. Nem dava o doidão.

Próximo capítulo:
A história de Zeferino Cabeção, o Profeta

Nota dos editores d'O Livro dos Livros
para as palavras e expressões usadas,
segundo Ma
x Antonio Azevedo de Medeiros
e outros escribas:


Califon
: Sutiã
Merda que virou boné
: O que dá tudo errado; a maior confusão
Bangalafumenga
: Zé-Ninguém
Acabar-se na mão
: Masturbar-se
Baitola
: Homossexual
Boca da noite
: Tardinha, quase noite; noitinha
Granvanha
: Comida escassa
Bucho furado
: Aquele que não sabe guardar segredo
Papudinho
: Cachaceiro
Cair nas águas
: Deixar-se enganar

Casado na igreja verde
: amancebado; amigado
Carregar água em balaio : Perder tempo; esforço inútil
Dar o doidão : Agir impetuosamente; enlouquecer
Nota adicional -
Quichua : [Língua dos incas]
Náhuatl : [Língua dos astecas]
Quicongo, quimbundo, iorubá : [Línguas africanas]
Queicuó/Caicó : [Rio da ave cuó (acauã)]

domingo, 25 de janeiro de 2009


Maputo, Moçambique:
Estação Ferroviária

Cartão postal de 1982


BALAIO PORRETA 1986
n° 2548
Rio, 25 de janeiro de 2009

O que sabemos de Moçambique? Bastaria dizer José Craveirinha e saberíamos muito. O poeta é um país, um jeito de silenciar, uma mistura explosiva entre oceano, nativismo negro, furor da terra e n'goma (tambores ressoando). Mas poucos conhecem Moçambique e Craveirinha, apesar do multiculturalismo e africanidade ostentados pelos brasileiros.
(STACARCA, in Luso-Poemas)


GUERRA
José Craveirinha (1922-2003)
[ in Kaningana un kaningana, 1974, via LusoVox ]

Aos que ficam
resta o recurso
de se vestirem de luto

... ... ... ... ...

Ah, cidades!
Favos de pedra
macios amortecedores de bombas.


NÁUFRAGOS
Marcela Ortolonan
[ in Metamorfose Pensante ]

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada. *
E meus últimos sonhos
morreram afogados no mesmo naufrágio
que matou a namorada chinesa
de Camões.
* Os três primeiros versos são de Fernando Pessoa/Álvaro de Campos.


TIRO DE BAIXO
Celso da Silveira
[ in Tempo de rir. Natal, 1984 ]

Em Caicó, um homem enfurecido, dizia para outro:
- Desça desse caminhão que eu quero dar seis tiros na sua cara.

E o outro, trepado na carroceria:
- Que merda de revólver é esse que só atira se eu descer?

[][][]

Amanhã, no Balaio:
A torre de Caicó,
mais um capítulo d'O Livro dos Livros:
a Bíblia revisitada por Moacy Cirne

sábado, 24 de janeiro de 2009

OS FILMES QUE MARCARAM
ÉPOCA NA CAICÓ
DOS ANOS 50
Clique na imagem
para verouvir
Rita Hayworth
numa das sequências mais famosas de
Gilda
(Charles Vidor, 1946)


BALAIO PORRETA 1986
n° 2547
Rio, 24 de janeiro de 2009


Gilda foi o primeiro filme a ser censurado (até 18 anos), em Caicó, quando de sua exibição por volta de 1952. Até então, todos os filmes eram apresentados livremente. Com Gilda foi diferente; para frustração de uma boa parte dos frequentadores do Cinema Pax (eu tinha 9 anos naquela oportunidade), 'seu' Clóvis estabeleceu a proibição para menores. Ficamos, pois, eu e a garotada, sem a habitual sessão domingueira. Só que na segunda-feira, o mesmo Gilda foi liberado, para a alegria da galera. A partir daí, aos domingos, por mais inocente que fosse o filme, o cartaz do dia estampava a maldita "censura: 18 anos". Explicação de 'seu' Clóvis: "Aos domingos, a sessão é para a família; nos outros dias, para a gandaia".


DECOMPOSIÇÃO
Fernando Cisco Zappa

nem metido a besta nem metido em meta
sou poeta

tenho excessos lixos
sou prolixo

não tenho rimas
pra isso

o resto de mim
cru
se
fixo


NIMBO
Adrianna Coelho
[ in Metamorfraseando ]

na minha terra

encharcada


há resquícios de chuva

nas fendas, pétalas

e corolas


até quando as gotas

cairão das folhas

e as pedras ficarão

úmidas?


quando é que a palavra

estia?


CUMAÉQUIÉMESMO?


Para o Google o Balaio deve ser o campeão da putaria. Pois não é que diante de uma pesquisa efetuada por um internauta, por sinal bastante especifica no campo do mundo virtual (ou seja: google.www.com.buceta), o nosso blogue, em 369.000 opções possíveis, apareceu em primeiríssimo lugar?


sexta-feira, 23 de janeiro de 2009


Crepúsculo.
Na África? Em São Saruê? Na Ásia?

Foto:
Roberta Febran


BALAIO PORRETA 1986
n° 2546
Rio, 23 de janeiro de 2009

O diálogo entre a ciência, a filosofia e a poesia poderia ser o prelúdio da reconstituição da unidade da cultura e também da ressureição do indivíduo, que tem sido a pedra de fundação e o manancial de nossa civilização.
(Octavio PAZ. A dupla chama; amor e erotismo, 1993)


MORADA
Adriana Monteiro de Barros
[ in Pianos invisíveis, 2008 ]

Meus urubus e demônios me visitam todos os dias.
Todos os dias meus urubus e demônios me visitam.
Me visitam os dias todos.
Entram sem bater e se instalam na sala
como se já fossem velhos conhecidos.
E, na verdade, são.
Desde pequena meus urubus e demônios me habitam.
Há tempos meus urubus e demônios moram dentro.
Meu medo não é do outro.
Meu medo tem medo de mim.
Eu sou meus urubus e demônios.
Meus urubus e demônios sou eu mesma
e muito prazer.


DIARIM DE MARIA BUNITA
(13)
Divulgação:
Menina Arretada do Seridó

Meu diarim quirido,

Ando muito arretada pur esses dias, tanto qui nem tive coragem de lhê contá. Apois num é qui Virgulino achô de levá a cabroêra toda pro cabaré de Inácia, lá pras banda de Poço Seco? E olha qui isso dá um dia e meio de caminhada! Levantô os hômi logo cedim e danô-se mato adentro, tudo cantano, filiz da vida! Só fiquemo eu, as mulé e uns dois cabra novato pra tomá conta do acampamento. Mais a minha raiva maior é qui ele feiz questão de levá o Diabo Lôro, se ao meno ele tivesse ficado, as coisa pur aqui tinha ficado mais animado, eu quiria mermo era vê a paia da cana avoá. Dadá vei se queixá cum eu, mandei qui ela ficasse no canto dela, eu lá sô mulé de ficar escutano lenga-lenga de ninguém? Adimais, o hômi dela tombem é meu, nas cruvianas da madrugadinha, num me interessa sabê nada deles dois... Mais derna qui meus dois amor foram simbora raparigá qui tô aqui morreno de sordade de uma noitinha cum eles na bêra do rio, tô sim, ai, ai... Mais diarim, mudano de cacete pra carai, tu sôbe da Mariatonha, mulé de Chicão Miguelim? Apois num é qui a pobrezinha caiu de cu trancado? Morreu de morte ligêra, sem mais mais, sem foi foi, a coitadinha...

Nota do Balaio, às 12:45h

Cair de cu trancado : Morrer subitamente.


quinta-feira, 22 de janeiro de 2009

A ROSA DE GAZA
Georges Bourdoukan

Você sobreviveu ao genocídio
Você sobreviveu aos massacres
Você sobreviveu à humilhação

Mas não conseguiram fazê-la odiar!

Destruíram sua casa
Destruíram sua escola
Destruíram sua infância

Mas não conseguiram fazê-la odiar!

Bela menina de Gaza
Tens muito a ensinar
Teu gesto redime a humanidade

Pois até os brutos podem se comover

Bela menina de Gaza
Bela rosa de Gaza
Teu gesto é a glória de seu povo

Bela menina-rosa de Gaza


BALAIO PORRETA 1986
n° 2545
Rio, 22 de janeiro de 2009

Se os americanos inteligentes, nesses tempos deprimentes, ainda se agarram à vida e tentam esticá-la o mais que podem, não o fazem por lógica, mas por instinto.
(H.L. MENCKEN, 1924, in O livro dos insultos, 1988)


Repeteco
UM DIÁLOGO

por Georges Bourdoukan

Dois burros conversavam quando um perguntou ao outro:
- Imagina você que quando um humano quer ofender outro humano o acusa de burro. Por que será?
- Não tenho a mínima idéia.
- Quando será que isso começou?
- E quem sabe?
- Realmente é estranho isso... Humano chamar outro de burro como ofensa.
- Talvez porque chamá-lo de humano fosse ofensa maior.
- Você acha?
- Claro! Você já viu algum burro explorar outro burro?
- Não.
- Você já viu algum burro oprimindo outro burro?
- Não.
- Você já viu algum burro abandonar a cria?
- Não.
- Você já viu algum burro sem teto?
- Não.
- Você já viu algum burro sem terra?
- Não.
- Você já viu algum burro torturando outro burro?
- Não.
- Você já viu algum burro declarando guerra a outro burro?
- Não.
- Você já viu algum burro invadindo o país de outro burro?
- Não.
- Você já viu algum burro matando ou morrendo em nome de Deus?
- Não.
- Então, qual ofensa é maior, chamar de burro ou de humano?

[ in Caros Amigos. São Paulo, nº 106, janeiro 2006, p.33 ]


Eis o Fluminense de 1952,
campeão da Copa Rio,
um verdadeiro mundial de clubes,
com Castilho (goleiro), Pinheiro (zagueiro-esquerdo),
Telê (ponta-direita) e Didi (meia-esquerda),
entre outros


BALAIO PORRETA 1986
n° 2544
Rio, 22 de janeiro de 2009

Há a dor e há a Esperança. Há a dor e há a Vida.
Há a dor e há o Fluminense.


AS AURORAS DOS HORIZONTES DESCONHECIDOS

Minha paixão pelo Fluminense começou a se definir em 1952, cristalizando-se em 1954, depois de uma vitória sobre o Flamengo por 3 a 0. Eu e os meus pais e irmãos morávamos em Caicó, então. Mas vários tios, entre os mais fraternalmente queridos, residiam em Jardim do Seridó. Vivíamos um mundo de alumbramentos. E aventuras. E descobertas. Amávamos o Seridó, os banhos de rio, as chuvas de inverno, o cinema, as mulheres. E o Fluminense.

Sim, todos eles torciam pelo tricolor: Silvino (irmão de mamãe, já falecido), Walfredo, Waldemar, Raimundo, Josebel e Gérson (irmãos de papai; vascaíno, por sinal). O entusiasmo dos seis pelo esquadrão das Laranjeiras e mais a minha admiração, sobretudo, por Castilho, Pinheiro, Telê e Didi me fizeram Fluminense. Para todo o sempre. Para todo o sempre. Ainda me lembro bem da minha emoção quando vi o tricolor campeão pela primeira vez, em 1969, num Maracanã com 180 mil pessoas. Naquele momento, o Seridó e os seis tios estavam do meu lado. Em pensamento, marcado pela mais vibrante das alegrias, numa vitória sublime sobre o rubro-negro. No dia seguinte, Nelson Rodrigues a imortalizaria em crônica antológica: "Quem não esteve ontem no Maracanã não viveu. Dentro de 200 anos a cidade dirá, mordida de nostalgia: aquele Fla x Flu!" (cito de memória).

Claro que os seis tios-irmãos não poderiam ser esquecidos. Dois deles, por uma questão de idade, eram mais próximos: Josebel e Gérson. Com Josebel, a afinidade passava de forma particular pelo grande interesse que sentíamos pelo cinema. Mas Gérson era uma figura especial: alegre, brincalhão, sempre falando apressadamente. Era como se ele tivesse toda a pressa do mundo para viver, para se realizar em toda a sua plenitude de ser humano, para sentir em profundidade o sertão - o nosso sertão -, para amar seus filhos, seus irmãos, seus amigos, o seu Fluminense - o Fluminense de um tempo menos rancoroso, de um tempo mais amoroso. Sim, Gérson era uma grande figura humana...

E ontem, ainda sentindo o impacto de uma morte anunciada, ocorrida na terça, eis que uma nova notícia, igualmente crua, igualmente cruel, iria me abalar. Mais uma vez. Gérson partira definitivamente para as planícies do Além e para as Auroras dos Horizontes Desconhecidos. Sabia que ele estava doente, é verdade, mas não contava com esse desfecho, exatamente agora. O que dizer? O que fazer? A dor continua. Simplesmente.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2009


Jardim do Seridó, RN:
Matriz de Nossa Sra. da Conceição

(Foto: autoria desconhecida)


BALAIO PORRETA 1986
n° 2543
Rio, 21 de janeiro de 2009

Há a dor e há a Esperança. Há a dor e há a Vida.
Há a dor e há o Renascimento.


UMA MORTE É UMA MORTE NÃO É UMA MORTE
Moacy Cirne

A morte de uma pessoa amiga não se faz fácil, por mais anunciada que tenha sido nos últimos meses. Não, não se trata da morte de uma criança e/ou de um jovem atingidos pela fome ou pelas bombas inimigas. Esta também, ou mais até, é uma morte dolorosa, terrivalmente dolorosa, assustadoramente dolorosa. Por ser absurda. Por ser irracional.

Mas a morte de uma pessoa amiga, de uma pessoa muito próxima da gente, tem uma dimensão cósmica que não se esgota em palavras de conforto, de bem-querer, de boa vontade. A rigor, tem uma dimensão cósmica que escapa ao próprio sentido da dor. Que escapa ao próprio sentido da vida, por mais que a vida continue. Para suas filhas. Para seu companheiro. Para seus irmãos e irmãs. Para seus amigos e amigas.

Porque é exatamente através da vida daqueles que ficaram - e ainda não partiram, e ainda não se encantaram - que a Sua vida continua entre nós: a memória de sua alegria, de sua fé, de sua ironia, de sua sinceridade, de sua determinação, de sua religiosidade é uma memória viva. E a lembrança que dela temos e teremos a fará viver para sempre, enquanto houver humanidade sobre a Terra, se não mais com a sua presença física, decerto com a sua presença intangível marcada pelas imagens do passado.

Assim é: uma presença intangível que se faz Natal. E que se faz Redinha e Ponta Negra, em noites de luar. Que se faz o cruzamento da Açu com a Afonso Pena, no antigo bairro da Solidão. Que se faz a Ponta do Morcego, em sua meninice. Que se faz a Igreja de Nossa Senhora de Fátima. E outras igrejas. Que se faz através de sua santa protetora: Nossa Senhora da Conceição. Tudo é vida, tudo é paixão. Mesmo que, neste momento, se faça o silêncio. Ou o "silêncio dos ventos" e o "silêncio de todas as cores", como diz o poeta Paulo de Carvalho no poema Ressuscitar-Te, em Cantabile, um livro publicado em Niterói em 2007.

E que se faz Vida. Porque é exatamente a vida de Margarida Miranda - uma batalhadora incansável - que suas filhas, seu companheiro, seus irmãos e irmãs (entre as quais, a minha companheira Fátima), e seus amigos e amigas não esquecerão jamais. Jamais. Mesmo que Natal, para todos nós, tenha morrido um pouco com a sua partida para outras terras e outras gentes.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009


Virgil Finlay
(1914-1971):
um dos maiores ilustradores da
ficção científica
de todos os tempos


BALAIO PORRETA 1986
nº 2542
Rio, 20 de janeiro de 2009

E até hoje não resolveram se eu sou nativo de capricórnio ou aquário. Até o meu signo é controverso!
(Fábio FRANÇOIS, in Odisséia Banal)


O AVESSO DO AVESSO
Márcia Maia
[ in Tábua de Marés ]

te encontraria
no deserto
às dez e meia
tonto de luz
passos trôpegos sobre a areia movediça

eu te desnudaria
meio-dia
sol a pino
e te manteria prisioneiro
até que tingisse
a tua pele
o mais negro ou rubro tom
e cegasse os teus olhos, o sol da tarde.

te abandonaria então
nu e insone
meio às sombras
sem sonhos
onde te escondias das noites quentes
de antigos janeiros.

por fim partiria
liberta
de ti
e do cárcere gelado
dos interditados verões do teu amor

desejo ao avesso
ainda pulsando em mim


EMBARCAÇÃO
Suzana Vargas
[ in Sombras chinesas, 1990 ]

Do meu sonho
ninguém
fará
navio.


Memória 1996
DEZ CONTOS MAGISTRAIS DE FICÇÃO CIENTÍFICA
Moacy Cirne
[ in Balaio, n° 845, de 26/06/1996 ]


1. O jardim do tempo (Ballard, 1958)
2. A cidade da chama cantante (Smith, 1931)
3. Shambleau (Moore, 1933)
4. Uma odisséia marciana (Weinbaum, 1934)
5. O último mundo do Sr. Goddard (Ballard |1964|)
6. Os homens da Terra (Bradbury, 1948)
7. Os poderes de Xanadu (Sturgeon, 1956)
8. Todo o tempo do mundo (Clarke, 1952)
9. O cair da noite (Asimov, 1941)
10. Não tenho boca e preciso gritar (Ellison, 1967)

Outros belos contos de ficção científica:
O gentil assassino (Ballard); A cidade do tempo (Ballard); Um som de trovão (Bradbury); Aqui há tygres (Bradbury); O marciano (Bradbury); Arena (Brown); Missão de salvamento (Clarke); Nenhuma outra manhã (Clarke); Flores para Algernon (Keyes); Primeiro contato (Leinster); A cor que veio do espaço (Lovecraft); Tudo o que nós somos (Sheckey); Raízes mortas (Simak); A aldeia encantada (Vogt); O ovo de cristal (Wells).


OBAMA OBAMA

E agora? E agora?
Não temos maiores ilusões.
Mas torcemos por ele, claro.
Ou seja: torcemos por nós
e pelo mundo.

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009


Palestina, Gaza

Imagem:
El Roto
via
Milton Ribeiro
a partir de
El País


BALAIO PORRETA 1986
n° 2541
Rio, 19 de janeiro de 2009

Poesia é muito difícil. Só com muita concentração, com absoluta determinação, com rigor extremo, pode-se construir um bom poema. ... Penso que a poesia está para a literatura como a matemática para as ciências
e o xadrez para os esportes.
(Sebastião NUNES, in Prosa & Verso, d'O Globo, 17/01/2009)


O LIVRO DOS LIVROS
(3)
Texto estabelecido a partir dos
Manuscritos do Mar Vivo das Arábias Orientais
com supervisão astrológica de Ludovicus Erasmus

A jangada de Mestre Cascudinho

E o Senhor das Alturas se fez impiedoso em sua fúria diabólica. Mas, entre todos os habitantes da terra, havia um que o Senhor das Alturas respeitava e considerava boníssimo: Mestre Cascudinho, morador da Cidade dos Reis, cujas andanças pelo interior do Rio Grande a todos causava admiração. Mestre Cascudinho era homem justo e íntegro. Gerou dois filhos. Ana Mariana Potyguar era o nome da donzela; Luís Fernandes Pedro Velho, o nome do mancebo. Mas a terra estava corrompida diante dos olhos do Senhor das Alturas.

Então o Senhor das Alturas disse a Mestre Cascudinho: "Chegou o fim de toda criatura mortal que existir. A terra está cheia de maldade. Vou destruir a todos com um toró tão grande que vai provocar, nos açudes da região e adjacências, a maior sangria de todos os tempos. Durante 40 dias e 40 noites choverá sem parar. Sangrará o Itans, o Boqueirão sangrará, sangrará o Gargalheiras, o Zangarelhas sangrará, sangrará a Passagem das Traíras, o Açudão de Açu sangrará".

E o Senhor das Alturas disse mais: "Construas uma jangada gigante, a maior possível, e nela abrigues tua família, os insetos do canto de muro de tua casa, o Boi Calemba, o Boi da Cara Preta, a onça Galileu Ziraldino e outros animais da fauna seridoense. E assim foi feito. E assim aconteceu. O toró que caiu, num raio de muitas e muitas léguas, inundou quase todo o Rio Grande e ainda sobrou água para outras terras e outras gentes.

Os mais antigos, os povos que, excluídos da jangada, conseguiram sobreviver, lutando contra a fúria do Senhor das Alturas, ainda se lembravam: as águas se tornaram violentas e aumentaram muito sobre a terra de modo que a grande jangada começou a flutuar na superfície das águas. As águas cresceram tanto sobre a terra que cobriram as montanhas mais altas que estão debaixo do céu.

Depois de mais 40 dias e 40 noites, quando as águas começaram a baixar, a jangada pousou sobre a Serra do Mulungu. Mestre Cascudinho e os outros, no meio de um lamaçal feladaputa, a abandonaram e, unindo-se a homens e mulheres que, aos poucos, começaram a surgir da Paraíba, de Pernambuco e do Ceará, e mesmo das Alagoas Sergipanas, esperavam pela Palavra do Senhor das Alturas.

Então o Senhor das Alturas, espantado porque o número de homens e mulheres era maior do que ele imaginara, mas momentaneamente conformado com a situação, falou a Mestre Cascudinho e aos demais: "Já que muitos sobreviveram, mesmo sem estarem na jangada, saiam, todos vocês, pelos sertões do Seridó, e forniquem bastante, sejam fecundos e se multipliquem sobre a terra". O Senhor das Alturas disse mais: "De minha parte, vou estabelecer minha aliança convosco e com vossa descendência: nenhuma vida animal será novamente exterminada pelas águas de um dilúvio, a não ser pelas bombas, pelos fuzis, pelas metralhadoras e pelas balas perdidas".

E assim Caicó se reergueu, reergue-se Acari, São José se reergueu, reergueu-se Serra Negra, Cruzeta se reergueu, reergueu-se Carnaúba dos Dantas. Currais Novos, também. Também Timbaúba dos Batistas. São Fernando, também. Também Parelhas. Ouro Branco, também. Também São João do Sabugy e Jardim de Piranhas. Só o Jardim do Seridó não fora engolido pelas águas e, com sua Biblioteca de Babel, permanecia praticamente inacessível para os pobres mortais de todas as cores e de todos os credos.

E a humanidade voltou a se espalhar por esse mundão de deus e o diabo na terra em transe, com seus vaqueiros e cantadores, e assim se formaram novos homens, novas mulheres, novas amizades, novas amigações. E a humanidade voltou a se impor: Rosembergue das Amérikas conheceu Carla Brunilda e outras mulheres e de tanto chumbregarem muitos filhos tiveram e muitos filmes fizeram. Chico Antônio do Coco Queimado conheceu Mário dos Andradas e os dois se apaixonaram por Patrícia Gavião, mulher de Oswaldo Pau-Brasil. Sindoval Rodrigo do Grajaú conheceu Rosa Hamburgo e de tanto discutirem as idéias dos livros proibidos da Biblioteca de Babel criaram a Comunidade Arretada do Mundo Novo. Dailor Galo da Madrugada conheceu Civone Completamente Nua e os dois, pássaros errantes, geraram filhos e filhas. Oswaldo Fescenino conheceu Nísia Mata Atlântica e de tanto chamegarem muitos filhos tiveram e muitos livros escreveram. Todos viviam, em média, 69 anos. E todos falavam a mesma língua-mãe: a língua tapuia.

[ Continua ]

Próximo capítulo:
A torre de Caicó

domingo, 18 de janeiro de 2009


Foto:
Oleg Novojilov
/fragmento/


BALAIO PORRETA 1986
n° 2540
Rio, 18 de janeiro de 2009

"Todas as idéias religiosas, metafísicas e históricas são, em última análise, produtos de grandes vivências do passado - representações delas"
(Wilhelm DILTHEY, 1929, de Passagens, de Walter Benjamin)


TIRO AO ALVO
Adriana Monteiro de Barros
[ in Das Coisas Que Eu Não Sei ]

Cai a janela
abre o pano
atiram flechas
sou o alvo.
Sou a flecha fincada no buraco negro do alvo
sou flecha fincada no peito
sou flecha fincada e mirada no buraco do peito.
Sou flecha. Sou alvo.
Atirem! Atirem, covardes!
Não irei reagir.
Perdi a coragem arqueada do suicídio.
que ele vá pra longe
que ele seja o alvo de outras flechas fincadas no meu corpo.
Sou flecha andarilha.
Sou flecha que atinge o ápice do alfabeto.
Sou linguagem pura e sem dialética
sou palavra tingida
sou arco de palavras, não de flechas.
Mas me disfarço em lingua afiada
e me retiro quando não há mais palavra...

Há um triste que me tinge
de eclipse

Há um triste que me cinge
de escuros

Há um triste que me cala
de réstias

Há um triste que me fala
de frestas

Há um triste que me sela
de sépias

há um triste que me cabe
de ausências

Há um triste que me fere

..................................

de luzes


MÍNIMA
Nydia Bonetti
[ in Longitudes ]

Rímel. Lápis. Blush. Batom
Agenda. Aspirina. Espelho
Chaves. Talão de cheques
Carteira. Calculadora
Cartão de crédito
Lixa de unha. Desodorante
Creme hidratante

Um terço. Uma oração. Medalhas
E uma fita azul da Mãe Aparecida
(Que a casa do Senhor do Bonfim
Ficou distante)
Um canivete artesanal de estimação
Herança de meu pai
3 x 4 daqueles que amo

Lentes de contato. Óculos de sol
Lenços de papel. CIC. RG. CREA SP
Canetas. Cartão de visita. Celular
Escovas. Filtro solar
E a imprescindível folha de papel
Em branco
À espera dos versos

Deus,
Como sou pequena!
Quase tudo que sou e preciso
Cabe dentro da minha bolsa


O RIO DE TODOS
Maria Maria
[ Espartilho de Eme ]

O rio
que abraça
a ponte
que aponta
para o poente
não é o mesmo
rio de Heráclito,
mas o de todos.

O rio me laça
com suas lembranças
cravadas nas pedras
brilhantes do Cruzeiro,
do navio estático,
próximo ao Pereiro
das Galinhas da Angola
(do Seridó).

O rio
é resiliente:
se preserva e se guarda
e se mantém perene
na memória.
Só me falta a chuva
para eu banhar minhas bonecas
às margens desse rio.


CUMAÉQUIÉMESMO?

Um internauta decerto abestado (ou então muito doidão) sapecou a consulta no Google: sonrisal na buceta. E o Google mais doidão do que o próprio internauta indicou o nosso Balaio em 8° lugar entre 216 possíveis blogues que poderiam apontar o caminho das pedras, isto é, da inusitada prática sexual. Sonrisal na buceta? Essa, acredito, nem mesmo o Chico Doido conhecia...