segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Gênesis,
de Robert Crumb


BALAIO PORRETA 1986
n° 2855
Natal, 30 de novembro de 2009

Será que existe, na história do cinema,
um filme mais "demoníaco" do que
O bebê de Rosemary (Polanski, 1968)?


A BÍBLIA DE CRUMB

Rio de Janeiro, 1971: através das páginas da revista francesa alternativa Actuel, estabeleci o meu primeiro contato com os então quase desconhecidos comix, um dos ícones da contracultura americana, ao lado de outros símbolos que marcaram toda uma época, na música, no cinema, na literatura. E os quadrinhos que surgiam - HQs de Crumb, Shelton, Moscoso, e sobretudo Corben (este, dentro de uma perspectiva diferenciada) - me faziam repensar a grafia dos comics. Depois, o contato com a mitológica Zap, incluindo o seu famoso número "0", era mais do que um simples contato: era a descoberta de um novo mundo.

Por vários motivos, então, esperava-se com ansiedade o Gênsesis de Robert Crumb. E é verdade: o seu grafismo peculiar (com pinceladas neogrotescas e mulheres "avantajadas"), a sua sutileza temática e o seu clima eventualmente irreverente (na época da contracultura, muitíssimo mais irreverente) marcam presença, em partircular formatação gráfica. E uma adaptação de obra literária, sobretudo de uma obra literária tão complexa quanto o Gênesis, escrita por autores anônimos (entre os quais uma possível e misteriosa Javista), não é para qualquer um. Mas Crumb soube enfrentar o "o problema" com galhardia.

Só que, analisando de forma mais fria, de forma mais equilibrada, há também uma certa frustração: Gênesis está longe dos melhores momentos quadrinhísticos de Crumb. Seu grafismo, para quem conhece a obra crumbiana, já se faz repetitiva, sem a ousadia icônica dos velhos tempos; a leitura do primeiro livro da Bíblia é mais literal do que em princípio deveria ser (cf. o episódio de Sodoma e Gomorra); a própria figura de "Deus" é por demais "bíblica", é por demais "humana". Neste particular, o Mr. Natural, do próprio quadrinhista alternativo, era muito mais interessante. Resumindo: há, aqui, um "respeito" decepcionante ao texto original, apesar de certas variações pouco ou quase nada convencionais. Mas, a rigor, são variações tímidas. Enfim, o melhor Crumb ainda é o dos anos 60 e 70, quando realizou alguns quadrinhos antológicos.

Gênesis, de Robert Crumb. Trad. Rogério de Campos. São Paulo: Conrad, 2009, 226p.


A Biblioteca dos Livros Impossíveis (1/50)
A BÍBLIA DOS DEMÔNIOS de Santo Antão
Marcos Faria
[ in Almanaque ]

A origem deste manuscrito está ligada às tradições sobre a vida de Santo Antão no deserto.

Alvo de constantes tentações para que abandonasse a sua vida de santidade e mortificações, o eremita resistiu a todas. E fez mais: chegou a aprisionar alguns dos demônios enviados por Satã para tentá-lo. Acorrentou-os no fundo da caverna onde vivia e obrigou-os a copiar a Bíblia, letra por letra.

As poderosas orações do santo forçavam os diabretes a realizar a tarefa. Copiar fielmente a Sagrada Escritura era, evidentemente, uma tortura insuportável para os espíritos imundos.

(Pouco antes de morrer, orientado pelo arcanjo Miguel, Santo Antão libertou os demônios para que voltassem ao inferno em vez de ficarem vagando pela terra. Com isso, impediu também que eles conspurcassem o Livro após a sua morte.)

No entanto, Atanásio de Siracusa afirmou que do mal só pode vir o mal. Mesmo subjugados pelo santo, os demônios encarregados da tarefa teriam instilado sua perversidade nas páginas do Livro. Assim, quem o lê sempre interpreta erradamente as palavras divinas. No Concílio de Trento, houve mesmo quem afirmasse que foi a Bíblia dos Demônios que inspirou a Reforma a Lutero.

Nota do Balaio: o historiador seridoense Muirakytan Macedo afirma, depois de algumas pesquisas arqueológicas, e de estudos sumerianos, que o manuscrito original da Bíblia dos Demônios encontra-se guardado em baú dourado que se acha numa loca sem fundo do Poço de Santana, em Caicó. Há controvérsias a respeito.


(DES)EMPATE
Líria Poto
[ in Tanto Mar ]

farinha do mesmo saco
pedaços do mesmo naco
bichos da mesma procedência
gente

mulher e homem
cachorro e gato

POEMA
Cláudio Schuster
[ in Beba Poesia ]

nada que reflete
arremessa
ameaça
estremece

a minha pressa
não permite
ver o visto
sem ver o vasto

o que não remete
não me interessa
não me atiça

o que não existe
é relativo
se num dia me matam
no outro
já estou vivo


CARTA DE AMOR
Carlos de Souza
[ in Substantivo Plural ]

Houve um tempo em que líamos Herman Hesse. Não lembro dos grandes livros dele, O Lobo da Estepe, O Jogo das Contas de Vidro… Lembro de Sidarta, Demian e O Último Verão de Klingsor. Parece besteira, mas Hesse ganhou o Nobel de Literatura. Hoje isso não diz mais nada, porque a academia sueca sofre de esclerose mental. Pois bem, foi por causa desse cara que eu passei a ver a vida de modo diferente. Foi por causa dele que eu fui parar em Nietzsche. A partir daí meu olhar para o mundo ficou oblíquo, desconfiado. Leio Schopenhauer sempre com um sorrisinho sacana no canto da boca. Mas Klingsor foi fundamental para eu não ter medo da velhice e da morte. Tem dias que eu vivo as mesmas sensações do velho artista Klingsor brindando seu entardecer. Hoje, por exemplo, estou assim. Penso em Picasso vivendo seus últimos dias. Penso em Luís Buñuel no limiar da despedida. Não pensem que o que estou dizendo aqui, agora, é carta de náufrago. Não, estou apenas sentindo o bafejar do vento solar em minhas faces e dizendo, ora, não seja por isso, venha. Viver e morrer é o mesmo sintoma da viagem. Gente humana é travessia, dizia o grande João. Não é preciso temer isso. Só quem teme são os covardes. Às vezes tem gente que olha para mim e diz, creia em Deus homem. E eu digo interiormente, o que é que eu tenho a ver com a história antiga do povo judeu? O que é que muda meu olhar diante deste mar, só porque um beduíno queria poder e disse ter visto um anjo em sua tenda ditando normas para sua sobrevivência? Religiões que nascem de revelações não me dizem nada. Kant me diz mais coisas inquietantes. Spinoza também. Então essa felicidade que sinto ao ver o sol nascer é algo bastante necessário. Eu brindo o roçar dos dias pelas esferas da eternidade. Eu brindo aos amigos. Eu brindo a Klingsor e sigo em frente. Assim vivo bem melhor em meio a este torvelinho de estúpidos.

domingo, 29 de novembro de 2009

África dos nossos amores:
Amanhecer no Saara.
(Decerto, o amanhecer no Ceará será igualmente portentoso.)
Foto de A. Blok


BALAIO PORRETA 1986
n° 2854
Natal, 29 de novembro de 2009

melhor construir gestos
que cultivar palavras vazias.
(Sheyla AZEVEDO, A cor do dia, in Bicho Esquisito)


DA CAICÓ PARA NATAL

O livro editado pelo Sebo Vermellho sobre os 50 Anos do Bar de Ferreirinha (por Roberto Fontes & Pituleira), lançado ontem em Natal, no Terraço Petiscos e Grelhados, ponto de encontro da colônia caicoense na capital natalense, fez o maior sucesso. Mais uma vez. Pois é, uma ruma de gente prestigiou o evento. Infelizmente, em processo de recuperação de uma cirurgia que me abateu na segunda-feira, não pude comparecer.
Maiores informações (e fotos) podem ser obtidas aqui.


DO QUE PASSOU
Lara de Lemos
[ in Dividendos do tempo. Porto Alegre, 1995 ]

Não me tragam memórias
de velhos tempos idos.

Deixem-me a sós comigo.

Cada poema tem o seu motivo,
cada gota de vinho tem seu travo
que não se repete noutro copo.

É preciso degustá-lo
sem agravos
e esquecer o que não foi bebido.


Diretamente do Bar Papo Furado
TEATRO RÁPIDO
Millôr Fernandes

O Capitalismo mais reacionário

Tragédia em um ato
Personagens: o patrão e o empregado
Época: atual

ATO ÚNICO

Empregado: – Patrão, eu queria lhe falar seriamente.
Há quarenta anos que trabalho na empresa e até hoje só cometi um erro.

Patrão: – Está bem, meu filho, está bem. Mas de agora em diante tome mais cuidado.

(Pano bem rápido)

sábado, 28 de novembro de 2009

Cartão postal antigo,
de origem francesa


BALAIO PORRETA 1986
n° 2853
Natal, 28 de novembro de 2009


ÚMIDA
Mariza Lourenço

nua e linda
em tuas mãos
sou líquida


ESTIVE DESLIZANDO
Lívio Oliveira


Estive deslizando na seda do teu corpo
onde encontrei, em gotículas de suor,
o brilho cristalino
que fez meus olhos transbordarem.

Tudo sorvi:
prazeres, encantos.
Ampliei-me na maciez de tua pele,
razão única de tecer a teia
na qual me joguei sem medo.

Busquei teus segredos mais inóspitos
e encontrei, cedo, o sonho guardado,
brinquedo que herdei na madrugada,
saciando uma vontade tensa
que se envolvia de perfumes, carícias.
Até mesmo uma dor inexplicável surgiu.

A língua tateava no escuro,
havia chegado a um ponto úmido,
quente, doce,
oásis descoberto.

FLANELINHA
Marconi Leal

[ in Culturando ]

- Pronto. Deixa solto. Quatro estrofes de Drummond, chefia.
- Como é que é?
- Pra parar o carro aqui, quatro estrofes.
- Tá louco, ô, moleque? Semana passada, eu parei nesse mesmo lugar e só tive que recitar cinco versos de Bandeira!
- O preço é tabelado, chefia. A gente temos sindicato e tudo. Se fizero esse preço pro senhor, esse sujeito deve de ser denunciado. Tá vilipendiando a arte.
- Três estrofes e não se fala mais nisso, ok?
- De João Cabral?
- Peraí, não era de Drummond?
- Quatro de Drummond, três de João Cabral. Sabe como é, o homem concorreu ao Nobel…
- Tá, tudo bem, eu recito Cabral, mas…
- Recitar, não. Dizer. Cabral não gostava que recitassem.
- Ótimo. Eu digo os três versos de Cabral…
- Estrofes.
- Tá, tá, as três estrofes. Mas só quando voltar.
- Aí, não. A última vez que confiei num sujeito que disse isso, na volta, ele só me recitou um Décio Pignatari ou um Campos desses aí… Sem falar em outro que quis me fazer engolir um Arnaldo Antunes. É pagamento na hora.
- Meu filho, eu tô atrasado, não tô com nenhum verso trocado, só lembro de poesia inteira. Quando voltar, lhe recito.
- O senhor é que sabe. Agora, não me responsabilizo se aparecer uma pintura pós-modernista na lataria do seu carro…
- Tá me ameaçando, moleque?
- Eu? Eu, não, nem de arte pós-moderna eu gosto, prefiro o traço clássico, sabe? Pintura figurativa… Mas o senhor sabe como esse pessoal é. Outro dia mesmo deixaram um fusca aqui sem eu ver. Quando o dono chegou, tinham feito uma instalação em cima, colocado uns guarda-chuva no teto, uma televisão velha no lugar do capô, essas coisas. O carro não prestou pra mais nada. Foi recolhido pelo Masp.
- Essa é boa! Esse povo podia assistir televisão, tocar pagode, jogar bola, mas não, vem pra rua esmolar literatura. Nem se divertir em paz a pessoa pode mais. Aposto que eu vou te dizer esses versos, tu vai se inspirar e fazer poesia pra vender em bar.
- Vou não, chefia. É só pra minha necessidade mesmo.
- Pensa que eu não sei? Tu vai vender poesia em bar, moleque.
- É não, é só pra meu consumo mesmo, eu juro.
- Tá, na volta. Já disse, na volta eu recito.
- Então, vai ter que ser Baudelaire
- Baudelaire? Por conta de uma ou duas horas a mais?
- Ou Rimbaud, o senhor escolhe.
- Ah, não! Que absurdo! Só porque tem carro, esse pessoal pensa que a gente é rico, que decora uma Ilíada por ano! Fique sabendo que eu mal sei de cor o Inferno da Divina Comédia, meu filho! Mas, tudo bem, a culpa não é sua. Acordo fechado. Na volta, te recito Rimbaud.
- Em francês, tá, chefia?

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Redinha, em Natal
Foto de
Pedro Morgan


BALAIO PORRETA 1986
n° 2852
Natal, 27 de novembro de 2o09

A Redinha que encantou Mário de Andrade nos anos 30,
também encantou outros poetas e escritores,
nos anos 40, 50 e 60. Mas a Redinha mudou muito.
E não foi para melhor.


TAKE-OFF
Sebastão Uchoa
[ in Antilogia. Rio, 1979 ]

1.
há quem faça obras
eu apenas
solto as minhas cobras
2.
o futuro? já sei de cor:
só me interessa a metamemória
perdido no cosmos
a minha pátria é o jardim das delícias
3.
que esperam de mim?
não sou ninguém
não me puxem pelo braço
sou revel
a minha consciência é o verme
e eu sou o cria corvos
4.
já vivi duas vezes
e sonho com a terceira vida
visível só como sombra
5.
façam de conta
que fui apenas um sonho
neste pesadelo da história
nem consegui gritar
fui enforcado com baader-meinhoff
ou pendurei-me em praça pública
com gérard de nerval?
6.
quem não se contradiz
não diz
radicalmente sério
só o cemitério


MOTIM
Florisvaldo Matos
[ in Exu, n° 18, Salvador, 1992 ]

Estou morto
Mas não me entrego,
Estou mutilado
Mas nego
Até o fim meu destino
De pássaro cego.

Estou perdido
Mas aperto
Ao peito este mapa
Incerto
Com seus rumos desconexos.

Estou mudo

Mas não sossego
Este grito que carrego,
Como lâmina nos dentes.

Estou cercado, mas resisto.

CADERNO DE ANDARILHO
/ Fragmentos /
Manoel de Barros
[ in Concerto a céu aberto para sócios de ave, 1991 ]

Sapo de noite arregala os olhos pra desmedir a saudade.

Melhor para entardecer é encostar em árvore.

Pessoa que lê água está sujeita à libélula.

Lagartixas piscam para as moscas antes de havê-las.

Cheio de vogais pelas pernas vai o caranguejo soletrando-se.


AH!, ESSA FALSA CULTURA
Millôr Fernandes
[ in O Cruzeiro. Rio, 1961 ]

Cristóvão Colombo era casado com a Rainha Isabel
e teve três filhas: Santa Maria, Pinta e Nina.

Para provar a teoria de Darwin
foi necessário achar um macaco muito inteligente.

A maré baixa é quando todos os peixes
resolvem beber de uma só vez.

O Texas foi descoberto pela Texaco.

Pileque foi um matemático que descobriu que a Terra gira.

A única coisa capaz de acabar com as secas do nordeste
é um sistema de irritação.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

POR QUESTÕES TÉCNICAS,
O
BALAIO (SÓ) VOLTARÁ A SER ATUALIZADO
NA PRÓXIMA QUINTA-FEIRA
(OU ANTES, SE POSSÍVEL)
<><><>
Noite estrelada
(1889)
VINCENT VAN GOGH


BALAIO PORRETA 1986
n° 2851
Natal, 23 de novembro de 2009

RELENDO GASTON BACHELARD (1884-1962):
A verdadeira poesia é uma função de despertar.
(A água e os sonhos)
O passado de nossa alma é uma água profunda.
(A água e os sonhos)
Os poetas sempre imaginarão mais rápido
que aqueles que os observam imaginar.
(A poética do devaneio)
Há idéias que sonham.
Certas teorias que se acreditam científicas,
são vastos devaneios, devaneios sem limite.
(A poética do espaço)
O sonho é mais forte do que a experiência.
(A psicanálise do fogo)


CONTINUA NA PRÓXIMA
Moacy Cirne
[ in Cinema Pax, 1983 ]

o seriado que eu vivi
não teve fim,
acabou,
continua na próxima semana
com a dor que
ficou.



O MELHOR DA MÚSICA BRASILEIRA DO SÉCULO XX
segundo a opinião de 330 leitores e/ou amigos
do nosso jornalzine, entre os quais
professores, estudantes,
poetas & outros

[ in Balaio n° 1268, de 13 de abril de 2000 ]

1. Asa branca
(Luiz Gonzaga & Humberto Teixeira, 1947), 139 votos

2. Carinhoso
(Pixinguinha, 1928), 138

3. As rosas não falam
(Cartola, 1976), 102

4. Eu sei que vou te amar
(Tom Jobim & Vinicius de Moraes, 1959), 81

5. Construção
(Chico Buarque, 1971), 77

6. Águas de março
(Tom Jobim, 1972), 74

7. Aquarela do Brasil (Ary Barroso, 1939), 73

8. Chega de saudade (Tom Jobim & V. de Moraes, 1958), 65

9. Travessia (Milton Nascimento & Fernando Brant, 1967), 63

10. Lamentos (Pixinguinha, 1928),
Trem das onze (Adoniran Barbosa, 1965),
Foi um rio que passou em minha vida
(Paulinho da Viola, 1970), 60 citações

E mais:

O mundo é um moinho (Cartola, 1976), 59 votos

Brasileirinho (Waldir Azevedo, 1944), 58

Nervos de aço (Lupicínio Rodrigues, 1947), 55

Rosa (Pixinguinha, 1917), 54

Feitio de oração (Noel Rosa & Vadico, 1933), 53

Luar do sertão (João Pernambucano
& Catulo da Paixão Cearense, 1914), 52

Sampa (Caetano Veloso, 1978), 49
Odeon (Ernesto Nazareth, 1910)

e Domingo no parque (Gilberto Gil, 1967), 47 citações


domingo, 22 de novembro de 2009

OBRAS-PRIMAS DO CINEMA
Clique na imagem
para verouvir uma sequência cantante de
Jules et Jim
(Ftançois Truffaut, 1962)
Uma mulher para dois (em alguns momentos, uma mulher para três) é um dos filmes mais sutis e amorosos da história do cinema, com sua beleza febril de conotações transplanetárias: na Paris da belle époque, dois grandes amigos - um francês e um alemão - se apaixonam pela mesmíssima e inesquecível mulher (interpretada de forma antológica por uma deslumbrante Jeanne Moreau). Os três, morando juntos, vivem um você-nós, eventualmente um você-eu, de raízes vivenciais sublinhadas pela sensibilidade narrativa e temática de François Truffaut. O filme, assim, é um poema cinematográfico, capaz de provocar alumbramentos e encantamentos: a rigor, plástica e existencialmente, é um turbilhão da vida, um turbilhão do amor. Pronto para ser contemplado, sequência por sequência; pronto para ser amado, fotograma por fotograma.


BALAIO PORRETA 1986
n° 2850
Natal, 22 de novembro de 2009

Grandes filmes lançados e/ou produzidos em 1962,
segundo a nossa avaliação atual,
sujeita a tempestades, tangerinas e seridolências:
1. Eclipse (Antonioni)
2. Viver a vida (Godard)
3. Jules et Jim (Truffaut)
4. O homem que matou o facínora (Ford)
5. O processo (Welles)
6. O anjo exterminador (Buñuel)
7. O silêncio (Bergman)
8. Muriel (Resnais)
9. Dois destinos (Zurlini)
10. Porto das Caixas (Paulo César Saraceni)
11. O processo de Joana d'Arc (Bresson)
12. A infância de Ivan (Tarkovski)
13. A faca na água (Polanski)
14. Harakiri (Kobayashi)
15. O homem de Alcatraz (Frankenheimer)
16. Labirinto (Lenica), curta/animação


POEMA de
Sanderson Negreiros (RN)
[ in 50 poemas escolhidos pelo autor, 2008 ]

Aves ardem
portos barcos muros.
O sol
cancioneiro
veleja em hábil azul.
Jaz.
E, baixo, desliza
o pomo do seu gasto sossego.

MERGULHO
Janice Caiafa
[ in SupLeMGnto. BH, março de 1995 ]

quando caio
nada vinga além do nado
caio entre e me salvo
pelo meio

guelras ganhas, estou só
absoluta no líquido

quase aquática
nem amo de tão perfeita


POEMA
Mariana Botelho
[ in Suave Coisa ]

minha boca quer silêncio
Alain Bisgodofu


Quero comer o verso
que tremula na
língua

e nunca mais falar de
poesia


EPICENTRO
Mercedes Lorenzo
[ in Cosmunicando ]

caladas
há palavras morando em minhas mãos
onde um gráfico sísmico
se desenha tradução


BOM DIA
Vivi Fernandes de Lima
[ in Atos da folia, inédito ]

Não há bom dia mais perfeito
do que a minha cara de bem comida
refletida no espelho.


APREÇO
Adrianna Coelho
[ in Metamorfraseando ]

tem sido um esforço caro
libertar a poesia:
da minha própria essência
torno-me cativa


PEDRA
Francisco Marcelo Cabral
[ in Livro dos poemas. Cataguases, 2003 ]

Escrevemos
porque sabemos
que vamos morrer.

Escrevemos
porque não sabemos
por quê.


Informação cultural
DE COMO O POPULAR FURICO É CONHECIDO
PELA BRAVA GENTE BRASILEIRA
- Alguns exemplos
[ in Balaio n° 810, de 9 de abril de 1996 ]

Arroto choco [] Ás de copas [] Arroz queimado
Almanaque [] Boga [] Bebê chorão [] Bainha de bosta
Bode rouco [] Bufante [] Bassoura [] Ceguinho [] Curioso
Demagogo [] Deputado [] Dólar furado [] Decente [] Digníssimo
Drácula [] Excomungado [] Excelência [] Foba [] Fi-o-fó
Frinfa [] Fedegoso [] Foreba [] Fogoió [] Fim de linha
Furiba [] Farinha azeda [] Fole gemedor [] Furioso
Flozardo [] Graduado [] Impaciente [] Inté logo
Janeiro [] Lamparina de cego [] Merdante
Oião [] Oritombó [] Plim-plim [] Sibazó
Trololó [] Tribufu [] Triscado [] Usina
Viajante [] Zeguedegue [] Zefini

( Fonte: Oxente, nous avons buchê,
de Orlando Caboré. Natal, 1996 )

sábado, 21 de novembro de 2009

UM FILME É UM FILME É UM FILME
Clique na imagem
para verouvir o trêiler de
As duas faces da felicidade
(Agnès Varda, 1965)
Um filme delicadamente impressionista, nas cores e na forma: a história de um jovem carpinteiro que ama sua mulher e seus filhos, e que se apaixona por outra mulher. O seu amor pelas duas é intenso, um amor que se revela embriagador: embriagador como uma tarde de verão ou como uma noite de lua cheia. Mas a ação do filme não se passa em Natal, nem em Caicó, não se passa em Olinda, nem em São José do Seridó, não se passa em Macaíba, nem em João Pessoa, não se passa no Rio, nem em Fortaleza; passa-se mesmo na França. E há uma tragédia no meio do caminho. Cabe perguntar, como já se fez: "O amor é algo natural? Onde começa o moralismo? Quem precisa da verdade?" Também já se disse: "O filme, com as cores sensuais do Impressionismo, é venenoso como um belo fruto bichado e cruel como a música de Mozart". Fotografia de Claude Beausoleil (que nome mais apropriado!) e Jean Rabier.

[Em tempo: a série 'Os filmes que marcaram Caicó nos anos 50'
voltará oportunamente
.]



BALAIO PORRETA 1986
n° 2849
Natal, 21 de novembro de 2009

Grandes filmes lançados e/ou produzidos em 1965,
segundo a nossa avaliação atual,
sujeita a chuvas, morangos e seridolências:

1. Simão do Deserto (Buñuel)
2. Pierrot le fou (Godard)
3. Os sem-esperança (Jancsò)
4. Por alguns dólares a mais (Leone)
5. A batalha de Argel (Pontecorvo)
6. As duas faces da felicidade (Varda)
7. São Paulo Sociedade Anônima (Person)
8. Alphaville (Godard)
9. A pequena loja da rua principal (Kadár)
10. A bossa da conquista (Lester)
11. Os amores de uma loira (Forman)
12. Film (Beckett & Schneider), curta


A POESIA ESTÁ DE LICENÇA
Maria Maria
[ in Espartilho de Eme ]

todas as lamparinas foram apagadas,
as velas já não choram mais,
não há mais luz nos candeeiros,
e a brasa do velho fogão de lenha se diz fria.

A poesia deseja um tempo de recolhimento,
de pausa para a meditação, de chá de camomila,
de descanso e de incandescências.
Precisa dormir com(o) os anjos.

APELO
Adriana Godoy
[ in Voz ]

traz para mim os dias que não vivi
todas as noites perdidas
e o sorriso que não tenho mais

vai lá e busca o que me cure
sem que doa ou que arda
apenas que alivie

encontre o que deixei cair na estrada
os poemas esquecidos nas gavetas
e as músicas que não ouço mais

molhe os pés no mar
porque aqui só há montanhas
e jogue uma flor pra iemanjá

deixe seu cheiro espalhado
compre uma garrafa de champanhe
velas amarelas e incensos de baunilha

estou aqui do outro lado e juro
tem uma lua enorme no céu da cidade


LIVROS & LIVROS

São vários os livros que deveremos ler (e comentar) nos próximos dias, todos igualmente dignos de atenção: sem ordem preferencial - Lábios-espelhos, de Marize Castro; Barbaridades críticas, de Marcius Cortez; Metamorfoses das linguagens, de Marcos Silva e outros; Simples filosofia, de Pablo Capistrano; Colóquio com um leitor kafkiano, de Nelson Patriota; De mocinhos e super-heróis, de Alex Medeiros; Dos bondes ao hippie drive-in, de Carlos e Fred Sizenando Pinheiro; Cenas brasileiras, de Marcos Silva e Bené Chaves (orgs.); Lendo as imagens do cinema, de Laurent Jullier e Michel Marie; Almanaque do cinema, de Érico Borgo, Marcelo Forlani e Marcelo Hessel; Gênesis [HQ], de Robert Crumb. Decerto, alguns desses livros já foram lidos, total ou parcialmente.


INFORMAÇÃO DE ÚLTIMA HORA

Acabamos de saber que a dona prefeita de Natal, a dondoca Micarla de Sousa, do PV, usou, agora de manhã, a Missa da Padroeira da cidade, na Igreja do Rosário, para fazer proselitismo político da pior espécie, explorando de forma melodramática a religiosidade do nosso povo. Haja paciência para tanta enrolação e merdiocridade.
Natal continua de luto.


sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Negritude baiana
Foto de
Alberto Coutinho



BALAIO PORRETA 1986
n° 2848
Natal, 20 de novembro de 2009

Preservar a memória é uma das formas de construir a história. É pela disputa dessa memória, dessa história, que nos últimos 32 anos se comemora no dia 20 de novembro, o “Dia Nacional da Consciência Negra”. Nessa data, em 1695, foi assassinado Zumbi, um dos últimos líderes do Quilombo dos Palmares, que se transformou em um grande ícone da resistência negra ao escravismo e da luta pela liberdade. Para o historiador Flávio Gomes, do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a escolha do 20 de novembro foi muito mais do que uma simples oposição ao 13 de maio: “os movimentos sociais escolheram essa data para mostrar o quanto o país está marcado por diferenças e discriminações raciais. Foi também uma luta pela visibilidade do problema. Isso não é pouca coisa, pois o tema do racismo sempre foi negado, dentro e fora do Brasil. Como se não existisse”.

(Cf. Brasil Cultura)


VOZ DO SANGUE
Agostinho Neto (Angola)
[ in Na noite grávida de punhais, 1976 ]

Palpitam-me
os sons do batuque
e os ritmos melódicos do blue

Ó negro esfarrapado do Harlem
ó dançarino de Chicago
ó negro servidor do South

Ó negro de África

negros de todo o mundo

eu junto ao vosso canto
a minha pobre voz
os meus humildes ritmos.

Eu vos acompanho
pelas emaranhadas áfricas
do nosso Rumo

Eu vos sinto
negros de todo o mundo
eu vivo a vossa Dor
meus irmãos.


NEGRITUDE
Demétrio Sena


Não invente alma branca pra minha carcaça;
sou tão negro por dentro quanto sou por fora;
tenho orgulho da pele, do sangue ou da raça,
do meu povo e das lutas travadas outrora...

Nem reserve um cantinho pra me dar agora;
o Brasil é meu campo, meu chão, minha praça;
somos todos iguais numa pátria que chora
pela desigualdade que divide a "massa"...

Reconheça os valores alheios aos tons
que jamais apontaram perversos e bons,
carimbando caráter, conceito, atitudes...

Aprecie sem truque, disfarce ou trapaça;
sem a velha expressão de quem concede graça
quando assente que o negro dispões de virtudes...


O QUILOMBO foi ... um acontecimento singular na vida nacional, seja qual for o ângulo por que o encaremos. Como forma de luta contra a escravidão, como estabelecimento humano, como organização social, como reafirmação dos valores das culturas africanas, sob todos estes aspectos o quilombo revela-se como um fato novo, único, peculiar, uma síntese dialética. Movimento contra o estilo de vida que os brancos lhe queriam impor ...

(Edison CARNEIRO. O quilombo dos Palmares, 1958)



SEDE
Acantha
[ in La Vie Bohème ]

Me abro
e me deixo
e me entrego
e me esvaio,
enquanto teus dedos falam coisas
no meu corpo,
com urgência e desordem,
exaurindo em mim o gozo e a voz...
incisiva-mente.


BELO HORIZONTE
José Bezerra Gomes

Pardais
cantam
dentro da madrugada

Amanhecendo
todos
vão de encontro à vida



POEMA
Danielle Mariam
[ in O Fingidor, Manacaparu, AM, n° 5/6, 1994 ]

não quero o sermão da montanha
nem o sermão do pastor
quero um gole de cachaça
e um homem que me faça gozar
quero transar na mata
curtindo o luar

não preciso de rimas
pois a puta da minha prima
quebrou o ventilador
e aqui tá o maior calor

pô - aqui tá o maior calor!



BACANTE
Iracema Macedo
[ in Lance de dardos, 2000 ]

Em meu ninho longínquo
inicio ventos
invento cios
canto e danço em volta do fogo
transformo meu leite em vinho
e ofereço meu corpo para os lobos



A CASA
Jairo Lima
[ in Bar Papo Furado ]

negro silêncio
guarda as salas
abóbadas inazuis confinam a sombra
que geometricamente talha a pausa entre gritos de luz
mortalha
a que o fagote dá cor
retalhos de sol pendem coagulados de portas e janelas
e os armários inscrevem sacrários para o sono dos panos
(dentro esvoaça um pássaro acordado)
na casa a voz mais alta é marromdourado
há um céu de candeias que inala luz
quando a hora exala a noite para dentro dos seus muros
e no mais recôndito do escuro
a casa respira os seus vãos
solar, sólido, soledade
pedras e madeiras, em ritmo binário,dançam antigo esplendor
ao som cor de parto
às três da manhã o sol ainda é improvável.


Memória 1988
BALAIO INCOMUN n° 95
Niterói, 23 de junho de 1988

PARA COMPREENDER O BRASIL: OS LIVROS CAPITAIS
segundo 24 professores da Comunicação da UFF

1. Casa grande & senzala (GIlberto Freyre, 1933)
2. Grande sertão: veredas (Guimarães Rosa, 1956)
3. Os sertões (Euclides da Cunha, 1902)
e Macunaíma (Mário de Andrade, 1928)
5. Memórias póstumas de Brás Cubas (Machado de Assis, 1880)
6. Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda, 1936)
7. Vidas secas (Graciliano Ramos, 1938)
8. Pequena história da formação social brasileira
(Manoel Maurício de Albuquerque, 1981)
e Recordações do escrivão Isaías Caminha (Lima Barreto, 1909)
10. Formação do Brasil contemporâneo (Caio Prado Jr., 1942)



COLÓQUIO COM UM LEITOR KAFKIANO

Será hoje, a partir das 18 horas, o lançamento do livro de contos Colóquio com um leitor kafkiano, do jornalista e escritor Nelson Patriota, ex-editor do jornal cultural O Galo e um dos colunistas do Substantivo Plural. O evento acontecerá na Siciliano do xópim MidiVaiMal (Av. Salgado Filho), nas imediações do antigo cabaré de Rita Loura. Vale a pena conferir, claro.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Foto:
Grzegorz Brzezicki



BALAIO PORRETA 1986
n° 2847
Natal, 19 de novembro de 2009

Esse espanto cansado, espalhado pela minha pele.
(Renata NASSIF, in Fênix em Verso e Prosa)


POEMA
Martha Galrão
[ in Maria Muadiê ]

Eu gosto mesmo é de usar vestidos
e saias.
As palavras me fascinam
por isso brinco com o fogo
das palavras.

Daquela tarde eu lembro
que mordi sem querer
minha boca
e das mãos em brasa.

Nossas mãos,
em silêncio,
criando segredos
e intimidade.


PAIXÃO E POEMA
Flávio Corrêa de Mello
[ in Rio Movediço ]

O poeta apaixonado
dedica versos e livros
para mulheres que comovem
e movem na impossibilidade
da matéria e no reverso
do espelho o beijo
tem cores para cores
e superfícies para desníveis.
É um ser em profunda
profusão dos amores mortos
e não ama e incompreendido
confunde e co-funde
imagens e mistura a sintaxe
e vagueia na ortografia
e deixa espólio
fugaz e rápido
de poesia mal
capturada.



GIRASSÓIS
Lou Vilela
[ in Nudez Poética ]

Corpos paredes lençóis
permissivos.
Sibilam bocas
provocam olhos ouvidos

: pontos encontros de peles pelos
partes intumescidas.

Tudo cala.

A brisa sopra horas vencidas.
Florescência.
O dia amanhece em paz.


NEM TRÁGICO
Iara Maria Carvalho
[ in Mulher na Janela ]

o menino sem circo
cercou de oferendas
a sua infância encardida
e projetou-se no oceano
dentro de uma garrafa velha.

do outro lado do mundo,
alguém há de bebê-lo

rindo.

MARACANÃ

Há certas vitórias que são docemente santas.
Há certas vitórias que são maravilhosamente épicas.


EXPRESSÕES NORDESTINAS
registradas por Fred Navarro
em seu Dicionário do Nordeste

Agora deu! : "Essa não!, não me diga isso!"
Baixa da égua : Lugar muito longe.
Cu-de-boi : Briga, confusão.
Donzela-de-candeeiro : Mulher que se pretende passar por virgem,
já sendo descabaçada.
Falar mais do que o homem-da-cobra : Falar demais,
não parar de falar um minuto.
Farinha azeda / farinha ruim: Pessoa de passado duvidoso
ou questionável.
Farol de jipe : Sujeito com olhos esbugalhados.
Lombriga de cu de pobre : Magro demais.
Mulher-por-conta : Amante.
Pisar em rastro de corno : Levar o maior azar, se ferrar na vida.
Rabo-de-galo : Facão, faca muito grande.
Secar as canelas : Andar muito.
Segundo-distrito : Ânus.
Valente que só cobra de resguardo : Valentão, cabra macho.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009


Meu caro desconhecido da Copacabana boliviana,
o que afinal fizestes com a doce María?
Aliás, quem é María?
Conheço virtualmente uma
Maria Maria curraisnovense,
mas, decerto, trata-se de outra.
Também será uma bela Maria poeta?
Ou será uma cangaceira como Maria Bonita?
Ou, então, simplesmente, será uma Maria Joana?
Mas, sejas homem, não te escondas!

[ Clique aqui para ver de onde "pesquei" a foto ]


BALAIO PORRETA 1986
n° 2846
Natal, 18 de novembro de 2009

Guardei as intempéries do teu corpo
Neste resto de fôlego que me sopras
(Assis FREITAS. Mosaico Repentino, in Mil e Um Poemas)


ZÊNITE
Marize Castro
[ in Lábios-espelhos, 2009 ]

Deuses sem rostos descem contra o sol.
Nesta cidade, lágrimas anunciam milagres.


TEXTOPOEMA
de Mario Cezar
[ in Coivara ]

adiante-se. nenhum orvalho atrapalha.


ANSEIO
Sônia Brandão
[ in Pássaro Impossível ]

Liberta-me! - grita
a flor atrás das grades.



CONFISSÃO
Volonté
[ in Proemas. Natal, 2004 ]

Há alguns anos atrás
achava-me um dândi
hoje sou o começo da
metáfora


ESTAÇÕES
Cacaso
[ in Beijo na boca, 1975 ]

Do corpo do meu amor
exala um cheiro bem forte.

Será a primavera nascendo?



LEITURAS INESQUECÍVEIS
Carta a D. - História de um amor,
de André Gorz.
Trad. Celso Azzan Jr.
(São Paulo : Annablume ; CosacNaify, 2008)

"Tive muitas dificuldades com o amor (ao qual Sartre dedicou umas trinta páginas de O ser e o Nada), pois é impossível explicar filosoficamente por que amamos e queremos ser amados por determinada pessoa, excluindo todas as outras" (p.25).

"É isto: a paixão amorosa é um modo de entrar em ressonância com o outro, corpo e alma, e somente com ele ou ela. Estamos aquém e além da filosofia" (p.26).

"O principal objetivo do escritor não é o que ele escreve. Sua necessidade primeira é escrever. Escrever, isto é, ausentar-se do mundo e de si mesmo para, eventualmente, fazer disso a matéria de elaborações literárias" (p.28)

"Eu necessitava de teoria para estruturar meu pensamento, e argumentava com você que um pensamento não estruturado sempre ameaça naufragar no empirismo e na insignificância. Você respondia que a teoria sempre ameaça se tornar um constrangimento que nos impede de perceber a complexidade movediça da realidade" (p.41).

"Você acabou de fazer oitenta e dois anos. Continua bela, graciosa e desejável. Faz cinqüenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. Recentemente, eu me apaixonei por você mais uma vez, e sinto em mim, de novo, um vazio devorador, que só o seu corpo estreitado contra o meu pode preencher" (p.70).


Memória 2005
BALAIO INCOMUN n° 1615
Desde 8 / 9 / 1986
Natal, 26 de outubro de 2005


Comentários atravessados
O LIVRO DESCONHECIDO


Estou à procura de um livro para ler. É um livro todo especial. Eu o imagino como a um rosto sem traços. Não lhe sei o nome nem o autor. Quem sabe, às vezes penso que estou à procura de um livro que eu mesma escreveria. Não sei. Mas faço tantas fantasias a respeito desse livro desconhecido e já tão profundamente amado. Uma das fantasias é assim: eu o estaria lendo e de súbito, a uma frase lida, com lágrimas nos olhos diria em êxtase de dor e de enfim libertação: "Mas é que eu não sabia que se pode tudo, meu Deus!" [CLARICE LISPECTOR. A descoberta do mundo; crônicas. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 233]

Estou à procura de um livro para escrever. Ou melhor, de um tema que possa ser transformado em livro. Já tenho o título, a partir de inspirações construídas com sangue, suor e lamentos. Também tenho minhas fantasias a respeito desse livro ainda inédito e, portanto, desconhecido inclusive para mim. Não será um livro qualquer. Eu, que já escrevi Os lusíadas e A divina Comédia, estou pronto para novos metaplágios e novas metacriações. Como todos sabem, Camões e Dante nunca existiram; foram criados pela minha imaginação. Contudo entretanto porém todavia, pensando bem, e desde já revelando a essência do meu ser angustiante-angustiado-borgeano, são vários os livros que escreverei nos próximos 120 anos. Os primeiros já podem ser nomeados, considerando-se a minha particular visão epistemológico-aramaico-tricolor-caicoense-existencial do mundo. Darei as dicas necessárias, para que não me acusem de tarado sexual. Ou de extra-terrestre enlouquecido pelas vogais do alfabeto greco-natalense-potengíaco. Eis os títulos e as devidas inspirações, com os inclassificáveis cuidados acadêmicos daqueles que, como eu, freqüentaram, na capital potiguar, Maria Boa e o Cova da Onça, nos anos 40 do século passado:

Perto do coração clandestino :
baseado em Clarice Lispector, claro;
Os desesperados do Mar Vermelho :
releitura da Bíblia, a partir de uma sugestão de Umberto Eco;
Os mortos são passageiros :
inspirado em Newton Navarro;
As aventuras de James Joyce na Cidade do Caicó :
a partir de indicações do historiador Muirakytan Macedo;
O triste fim de Dom Casmurro:
Lima Barreto/Machado de Assis sob a ótica de um seridoense
pra lá de Jucurutu;
Memórias sentimentais de José Bezerra Gomes :
o encontro de Oswald de Andrade com o escritor currais-novense;
O canto de muro do jardim das delícias :
Câmara Cascudo/Bosch, para alegrar o coração dos descontentes;
As dunas vermelhas de Caiçara do Rio dos Ventos :
com a devida aprovação de Nei Leandro de Castro, mesmo que não existam dunas, sejam azuis, sejam amarelas ou vermelhas, em Caiçara de todos os rios e de todos os ventos;
Velhas comédias da vida privada :
entre Milton Ribeiro e Luís Fernando Veríssimo;
Livro de poemas de Zila Mamede :
de Jorge Fernandes à cristalina Zila,
só a poesia e a música podem nos salvar;
Peleja de Zé Limeira da Paraíba com Chico Doido de Caicó :
releitura das anotações de Orlando Tejo;
Para não esquecer a hora da estrela :
Clarice Lispector, mais uma vez, para não dizer que não falei de
águas vivas e maçãs no escuro.


terça-feira, 17 de novembro de 2009

Foto:
Rafal Limburski


BALAIO PORRETA 1986
n° 2845
Natal, 17 de novembro de 2009


ensina-me, agora, a fertilidade da alegria.
(Mariana Botelho, in Suave Coisa)


CANÇÃO
Cecília Meireles
[ in Viagem, 1939 ]

Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

Minhas mãos ainda estão molhadas
do azul das ondas entreabertas,
e a cor que escorre dos meus dedos
colore as areias desertas.

O vento vem vindo de longe,
a noite se curva de frio;
debaixo da água vai morrendo
meu sonho, dentro de um navio...


Chorarei quanto for preciso,
para fazer com que o mar cresça,
e o meu navio chegue ao fundo
e o meu sonho desapareça.

Depois, tudo estará perfeito:
praia lisa, águas ordenadas,
meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
POEMA
Nydia Bonetti
[ in Longitudes ]

chuva e escuridão
o mesmo céu da infância

... sem lamparinas



Recomendamos a leitura do artigo
PV NO PODER?
QUE NADA, O PODER É DO PTV
- PARTIDO DA TV PONGA NEGRA
de Cefas Carvalho
[ in Noticiando ]


DAS ELEGIAS: DIDÁTICA
João Filho
[ in Hiperghetto ]

O áspero poema? Não mais quero.
O inviável abismo? Já descri.
Foi com inabalável esmero
que duramente me persegui.

Se tudo é insuficiente, espero.
O instante vence o tédio, senti.
Se a valsa mudou-se em bolero
o ritmo pouco importa, vivi.

Pelo tropeço suavizei o passo.
Seu corpo é o sentido que devasso
devagar, como quem respira.

Gota que se equilibra suspensa –
a vida. Mínima que é imensa,
quando pensa que é real, delira.


INFLEXÍVEL
Mariza Lourenço

[ in Blocos ]

às vezes meu corpo despenca
no imaginário de teus versos.

de resto continuo cumprindo a mesma rotina
de cerrar portas e janelas
à aproximação de qualquer rima.



Memória 1993
BALAIO INCOMUN
Folha Porreta
VII / n° 493
Rio, 1 jun 93


O DIÁRIO SECRETO DE LAMPIÃO
(Fonte inicial: Papa-Figo, de Recífilis)

Baixa-da-Égua (24/6/24)
Querido diarim. Hoje tô tão arretado que capei cinco e arranquei as pregas de mais oito cabras que soltaram uma indecência para Maria Bunita. A culpa também foi dela, pra que eu fui deixar a danada passar o carnaval em Olinda? A criatura voltou cheia de idéias, capaz inté de ter fumado maconha por lá. Ainda por cima agora tá achando que tá prenha. Se o minino sair galego eu sangro Corisco. Ou será que ele pensa que num tô notando o jeito que ele vive cubando as entrecoxas de Maria Bunita quando ela tá de cócas. Também ela precisa acabar com essa mania besta de não usar calçolas, parece inté que a sua priquita num tem dono. Tem, sim senhor.

Oiti-da-Mãe-Joana (24/8/24)
Querido diarim. Esse negócio de eu só escrevinhá no dia 24 é coincidência, viu, que eu sou muito do macho. Hoje tô de novo arretado, com vontade de arengar com o primeiro fidaputa que aparecer na minha frente. Corisco tá com jeito de quem tá querendo enfeitar minha testa, mas antes disso eu como os ovos dele com queijo e cuscuz. Aquele galego da pustema num tira o olho da minha nega. Só porque a mulher dele é Dadá ele pensa que toda mulher é só olhar que ela dá dá. Derna que disseram que ele vai aparecer num filme de um tal de Glauber Rocha que Corisco só tá querendo ser o coisa e tal, também com aquele cabelão de frango que ele usa tinha que terminar dando pra artista, viado ou professor da UFF. Vai acabar metido em grevença.

Pau-dos-Ferros-da-Gota-Serena (23/2/25)
Querido diarim. Andando por esse mundão de Deus e do meu Padim Ciço, dá pra perceber, o Brazil tá fudido. Tanta riqueza, tanta miséria e tanto cabra safado sem macheza nenhuma. Será que foi tudo capado? Não sô profeta, mas um dia, lá pelas horizontanças de 89, 91, 93, sei lá quando, machos e fêmeas que ensinam o abecê da filosomia e que trabalham pru guverno federal ainda vão pegar nas armas do saber e abalar o paiz. Maria Bunita e o cabra Leontino concordam comigo. Então, o sertão vai virar mar, o mar vai virar sertão.

Arre-Égua-do-Norte (25/3/25)
Querido Diarim. Hoje dei um trompaço num cabra que se meteu a besta com Maria Bunita. Depois mandei Jararaca arrombar o fi-o-fó lá dele e cortar a macheza do dito cujo. Eu num danço conforme a musga, danço conforme o contravento. Não sô homem pra perder tempo com miolo de quartinha. Por isso mesmo Corisco nunca mais olhou pras pernas da minha bichinha. Quem pode carrega e sai, quem num pode carrega e cai. Quem tem Maria Bunita, tem cheiro e cafuné.

Canapi-da-Bosta-de-Jumento (13/7/25)
Querido diarim. Bem que ocê poderia ser um Diadorim, se bem que Maria Bunita já é a neblina dos meus encantalamentos. Mas um dia um escrevinhador retado de luas e marés ainda vai diadorinhá a vida do grande sertão pra que os outros e muitos outros possam ler e aprender. Num sei se estarei vivo pra ver tudo isso escrito e bem escrito. Mas, num é nada, num é nada, esteja onde estiver, aqui, acolá, além, darei meu sorriso de sartisfação. Afinal, bangalafumenga nenhum, mesmo no Inferno, vai me impedir de continuar macho. A macacada que se cuide. Sei que desgraça pouca é bobagem, mas nos futuros um tal de Fernandim das Alagoas vai querer desgraçar a vida do paiz. É uma pena, já estarei morto, senão cozinhava em azeite de dendê as partes roxas lá dele. Os cabras iam adorar.

[ Texto estabelecido pelo Prof. Jomard Martins Marconi ]