quinta-feira, 22 de outubro de 2009

A arte de
Toia Neuparth
(Nascida em Lubango, Angola, em 1943)
in Namibiano Ferreira


BALAIO PORRETA 1986
n° 2819
Natal, 22 de outubro de 2009

Engraçado. Quando eu era sebista me entrava um cara com uma camisinha de malha Lacoste de 150 mirréis, um tênis de 400 paus, um óculos escuro de 150 reais e pegava um livro de míseros 30 reais para reclamar que era caro. Livro não é caro porra nenhuma. Livro, no Brasil, não tem valor. Isto é outra coisa. Ou seja: livro não serve para comer ninguém, nem para enganar o chefe no trabalho, nem pra dar status na conversinha no bar da esquina e, por isso, não merece qualquer "sacrifício" financeiro. Livro não serve pra nada. Só pra ler, pensa o imbecil e revira os olhos.
(Jairo LIMA. Preço e valor, in Bar & Cachaçaria Papo Furado)



A SILHUETA
Celso Japiassu
[ in Uma Coisa e Outra ]

A silhueta transpõe
os limites do muro:
é um desenho de sombras.

Os braços revolvem os traços
e ampliam imagens
impregnadas de chuva.

As portas se abrem
e as retinas de um velho se fecham
em solilóquio mudo.

A cidade desperta pelos ventos,
murmúrio
no vazio dos espaços.

Sem origem ou nome,
acompanha uma palavra,
inania verba, seus íntimos ruídos.

Ruas desaguam como rios
e canalizam os ventos, sopram
memórias em oceanos represados

no estuário das distâncias,
à margem das arquiteturas
num gesto construídas.

Um cão mistura-se à poeira,
gane, rasteja para as sombras,
perscruta o enigma, corre e some.

Na fronteira da noite, surge o dia,
a tarde ensolarada, e um gemido
libera o sentimento que o prendia.

Os sons reproduzem vidas primitivas,
existências afogadas,
mares antigos.

Testemunha de ausências,
este é o mar que acompanha
o vento chegar a seu destino.


ESBOÇO
Gilka Machado
[ in Sublimação, 1938 ]

Teus lábios inquietos
pelo meu corpo
acendiam astros...
E no corpo da mata
os pirilampos,
de quando em quando,
insinuavam
fosforescentes carícias...
E o corpo do silêncio estremecia,
chocalhava,
com os guizos
do cri-cri osculante
dos grilos que imitavam
a música de tua boca...
E no corpo da noite
as estrelas cantavam
com a voz trêmula e rútila
de teus beijos...


PEDRAS DE TOQUE DA POESIA BRASILEIRA
[ Cf. José Lino Grunewald, 1996 ]

perdido entre signos
decifro devoro
persigo persigno
(Carlos Ávila, perdido entre signos)

(A) poesia é pura?
a poesia é para
de barriga vazia.
(Haroldo de Campos, Servidão de passagem)

Poesia é voar fora da asa.
(Manoel de Barros, Uma didática da invenção - XIV)


ERA UMA VEZ UM DICIONÁRIO
João da Mata Costa
[ in Substantivo Plural ]

"Já consultou o Cascudo? Cascudo é quem sabe. Me traga aqui o Cascudo.”
Carlos Drummond de Andrade

(Esse post é dedicado ao amigo Moacy Cirne, que comentou comigo sobre o ocorrido)

A nona edição do Dicionário do Folclore Brasileiro, obra de uma vida inteira escrita por Luís da Câmara Cascudo, foi editada pela editora Global em 2000. Edição revista, atualizada e ilustrada (sic). E pode? Quem autorizou? Tenho todas as edições desse dicionário e qual não foi a minha surpresa ao constatar que a nova edição do Dicionário foi completamente modificada.

A 1ª edição saiu em 1954. A 2ª ed. 1959. A 3ª ed., 1972. No prefácio da 4ª ed., escreve Cascudo, em 1979. “Para essa 4ª ed, aliás 5ª por ter havido da 2ª uma reimpressão nas Edições de Ouro, trago correções, melhoria bibliográfica, alguns verbetes lembrados e reclamados pelos leitores e originais de Carlos Krebs e Moarci Sempé, gaúchos e a homenagem aos companheiros falecidos depois de 1972”. No prefácio da 5ª ed. em 1983, Cascudo anuncia não haver alteração no texto do Dicionário devido ao seu estado de saúde.

Qual não foi nossa surpresa ao comparar a nona edição do famoso Dicionário do Folclore Brasileiro, uma das obras mais importantes e referenciadas do polígrafo Cascudo, e constatar que o livro foi completamente adulterado e modificado para pior, em nossa opinião. Muitos verbetes foram suprimidos. Outros alterados. Verbetes foram acrescidos. As ricas referências bibliográficas ao final do verbete foram retiradas. Grafias modificadas.

O dicionário de Cascudo é uma obra irregular, mas o livro é como um filho que não pode ser modificado em sua essência e conteúdo. Alguns verbetes são muito ricos em suas informações e conteúdos outros nem tanto. Ainda assim uma obra gigantesca.

A edição da Global altera completamente a obra e isso é inadmissível. Os belos verbetes Aboio e Acauã foram reduzidos de forma criminosa. No verbete Aboio, a edição da Global incluiu uma pequena partitura colhida em Araraquara/SP e uma outra linha melódica retirada do livro As melodias do boi e outras peças, do Mário de Andrade. Nada que justifique a redução do texto.

Os verbetes Abadá, abuxó e tantos outros foram retirados. E foram incluídos abacaxi e abobrinha. Algumas ilustrações foram acrescidas na nona edição. Como se diz aqui no Nordeste, o que foi feito com o Dicionário do Cascudo é um tremendo abacaxi. E foram muitas as abobrinhas colocadas, o que provocou um empobrecimento do livro. Um crime que espero não seja repetido em edições futuras.

Nota do Balaio:

O cronista Vicente Serejo, aqui mesmo em Natal, já chamara a atenção para o lamentável fato: um crime cultural de consequências desastrosas. Será que a acadêmica Ana Maria Cascudo, filha do Mestre, pronunciou-se a respeito? E o Centro de Estudos Câmara Cascudo, da UFRN? Qual a opinião do poeta Diógenes da Cunha Lima, presidente da ANL, cascudólogo assumido, a respeito? Anos depois da criminosa reedição, é preciso repetir: Uma vergonha, simplesmente!

15 comentários:

Anônimo disse...

Oi querido!
Tudo ótimo como sempre por aqui.
Bjs.

Unknown disse...

Bela fotografia! Pelas lentes de Toia Neuparth!

Tem gente que menospreza mesmo o valor de livros, quando nós que bebemos do seu manancial, damos o valor.

Poemas todos belíssimos com destaque para Gilka Machado.

Muito bom o "Era uma vez um dicionário! CASCUDO!

No mais tudo perfeito, como sempre!

Beijos

Mirse

Unknown disse...

Bela fotografia! Pelas lentes de Toia Neuparth!

Tem gente que menospreza mesmo o valor de livros, quando nós que bebemos do seu manancial, damos o valor.

Poemas todos belíssimos com destaque para Gilka Machado.

Muito bom o "Era uma vez um dicionário! CASCUDO!

No mais tudo perfeito, como sempre!

Beijos

Mirse

Jens disse...

Moacy, discordo da afirmação do Jairo Lima de que livro não serve para comer ninguem. Os sonetos de JG de Araújo Jorge me ajudaram a comer umas duas ou três beldades em anos distantes (atualmente vivo um período de estiagem; mas o verão vem aí).
Quanto a sacanagem da Global com a obra do Câmara Cascudo, é mais um exemplo do desrespeito com que o conhecimento é tratado em nosso país. Partindo de uma editora, que deveria zelar pela preservação das obras fundamentais da nossa literatura, a situação é ainda mais preocupante e vergonhosa, como você bem salientou. Não se fazem mais livreiros como antigamente, amantes da cultura como o Enio Silveira da Civilização Brasileira.

Um abraço.

Pedrita disse...

adorei o esboço da gilka machado. beijos, pedrita

Dilberto L. Rosa disse...

Concordo com o Jens, mas livro ainda é subestimado mesmo... Um grande poeta (não sei se conheces), Nauro Machado, daqui destas terras, disse para mim bastante chateado, diante de uma venda de "abadás" para essas micaretas doentias: "cara é uma porra dessas; livro não é caro merda nenhuma!". Nauro sabe das coisas, e Chico Doido também: dou o maior ponto para este partido que surge; tomara que ele alcance Brasília! E sua lista de 59 me deixou com água na boca para uma segunda parte, uma nova lista para mais 50 filmes meus (agora incluindo Goddard!)! Grande abraço, poeta!

Dilberto L. Rosa disse...

Em tempo: poeta, vê o que me dizes de uns poemas bacaninhas meus nos Morcegos e, anonimamente, no blog da amada Érica (http://perdendo-o-medo.blogspot.com/). "Sua opinião é muito importante para nós!". Abração!

Eleonora Marino Duarte disse...

mestre moa,

fui conhecer o trabalho de toia neuparth (há outras pinturas belíssimas, não?)

li os versos e as prosas,

Jairo fez valiosa observação, e eu penso exatamente como ele, livro não é caro, livro aqui não tem é valor!

"A SILHUETA"
de Celso Japiassu é um verso maravilhoso!

"ESBOÇO"
de Gilka Machado é um dos mais delicados versos que você já publicou aqui!


a colagem

"PEDRAS DE TOQUE DA POESIA BRASILEIRA"
do José Lino Grunewald
é um primor!


"ERA UMA VEZ UM DICIONÁRIO"
tem no texto de João da Mata Costa uma declaração apaixonada em favor da ética, do respeito e do direito autoral, afinal de contas!

quanto a nota do balaio, faço como sugeriu, repito indignada com a tamanha sacanagem feita com obra de cascudo: "Uma vergonha, simplesmente"



um beijo, querido!

Mme. S. disse...

boquiaberta, indignada e agora querendo saber o que ocorrerá com o Dicionário...

Paulo Jorge Dumaresq disse...

Moacy, de passagem, sou passageiro da tua sensibilidade. Teu Balaio bombando em terras do semi-árido. Há braços.

assis freitas disse...

Quem cometeu a heresia com o Dicionário merecia uns cascudos, ipsis literis.

nina rizzi disse...

eu, silhueta em esboço, sou mais cascuda. e viva a balaiada!

nydia bonetti disse...

Respondendo tua pergunta, Moacy: às vezes também tenho dúvidas, já não sei mais ao certo quem "ela" é. Que lindo este "esboço"... Bjs.

Cosmunicando disse...

entre cascos e cascudos, vamos tentando driblar o menosprezo ainda presente em relação aos livros no país... livro é tudo!

amei as pedras de toque do grunewald.

beijo

NAMIBIANO FERREIRA disse...

A Toia ficou porreta aqui no seu Balaio!!
Kandandu