segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Seria o Pico do Cabugi, em Lajes,
no interior do nosso Rio Grande,
o verdadeiro Monte Pascoal
do achamento de Cabral?
[ Foto: Anderson Nunes Fernandes ]


BALAIO PORRETA 1986
n° 2802
Natal, 5 de outubro de 2009

A prosa é o diurno, a poesia é a noite; se alimenta de monstros e símbolos, é a linguagem das trevas e dos abismos. Não há grande romance, pois, que em última instância não seja poesia.
(Ernesto SÁBATO. O escritor e seus fantasmas, 1963)


A SILHUETA
Celso Japiassu
[ in Uma Coisa e Outra ]

A silhueta transpõe
os limites do muro:
é um desenho de sombras.

Os braços revolvem os traços
e ampliam imagens
impregnadas de chuva.

As portas se abrem
e as retinas de um velho se fecham
em solilóquio mudo.

A cidade desperta pelos ventos,
murmúrio
no vazio dos espaços.

Sem origem ou nome,
acompanha uma palavra,
inania verba, seus íntimos ruídos.

Ruas desaguam como rios
e canalizam os ventos, sopram
memórias em oceanos represados

no estuário das distâncias,
à margem das arquiteturas
num gesto construídas.

Um cão mistura-se à poeira,
gane, rasteja para as sombras,
perscruta o enigma, corre e some.

Na fronteira da noite, surge o dia,
a tarde ensolarada, e um gemido
libera o sentimento que o prendia.

Os sons reproduzem vidas primitivas,
existências afogadas,
mares antigos.

Testemunha de ausências,
este é o mar que acompanha
o vento chegar a seu destino.


RENASCENÇA
Adrianna Coelho
[ in Metamorfraseando ]

sob a chuva meus olhos
revelam a luz nas cores
das horas lúcidas

reflexos de deuses estrondosos
em minhas memórias

livres de marquises
meus pés dissipam o asfalto
e a nostalgia ressurge
ríspida e imprevista
em incessantes fluxos
na paisagem úmida

improvisada

a vida vaza nas esquinas
de um cruzamento abstrato
constantemente renovado
pelas águas que correm
junto ao meio fio da lâmina
das minhas palavras
e de nossos atos

e nesse ar concreto
onde me encontro
tudo sufoca
tudo é ralo

há dramas contidos no meu corpo
derramado e exposto
na calçada


Repeteco
HUMANO, DEMASIADO FRÁGIL
Sanderson Negreiros
[ in Tribuna do Norte, em Quadrantes, jan/2007 ]

1. Conta-se que Padre Mota, experimentado conhecedor da natureza humana e que, durante a existência inteira, marcou a vida de Mossoró, certa vez recebeu no confessionário uma dama que, penitente, foi logo dizendo:

- Padre Mota, meu grande pecado é o orgulho.
O vigário, bonachão e curioso daquele testemunho tão veraz e eloquente, foi perguntando:
- Minha filha, você é rica?
- Não, senhor.
- Você é bonita, elegante, charmosa?
- Não, senhor.
- Você é inteligente, tem cultura?
- Não, senhor.
- Me diga uma coisa: você é de uma família muito importante?
- Não, senhor.

E Padre Mota, do alto de seus sapatos de fivela - sapato de monsenhor protonotário apostólico - perdeu certa paciência magnânima e foi, como sempre, sincero e objetivo:

- Então, minha filha, você não é orgulhosa. Você é muito é da besta.

E anotemos na nossa agenda: quantas vezes na vida pensamos que agimos por orgulho, quando, na realidade, o que somos mesmo é donos da besteira universal, unânime e concreta. A besteira da arrogância.

2. Leio nas memórias de Vitorino Freire uma passagem deliciosa com Benedito Valadares, mestre da matreirice política de Minas Gerais. Certa vez, Vitorino, senador pelo Maranhão, mais o senador Gilberto Marinho, conversavam com Benedito, autor inclusive da famosa frase: "Estou rouco de tanto ouvir". O velho pessedista mineiro, que Getúlio retirou do anonimato de Patos de Minas, onde era humilde dentista, e o fez interventor por quase quinze anos. Consabidamente não falava, mas era de uma sabedoria política inquestionável. Dele também é a sábia advertência: "Só realize reunião quando tiver decidido tudo antes. Reunião é feita para aprovar". Certo dia, Benedito estava conversador mais do que a medida permitida pela prudência mineira. Vitorino e Gilberto Marinho ficaram em silêncio, vendo e ouvindo a desenvoltura do velho Valadares. Mas, mal discorria, Benedito para e cala. Vitorino interroga:

- Benedito, por que você parou de falar?
E a matreirice responde:
- Parei porque vocês estavam prestando muita atenção no que eu estava dizendo.

3. A melhor história que ouvi até hoje, elejo uma a mim contada por João Batista Machado, o nosso Machadinho. Acontece que Padre Sales, venerando sacerdote mossoroense, ao completar 80 anos, recebeu homenagens merecidas, culminando com um banquete. Ao agradecer todos os elogios de seus ex-alunos e amigos, foi de uma sábia franqueza: "Meus conterrâneos, ao agradecer tantas louvações, quero dizer-lhes o seguinte: Depois de ser vigário nestas paróquias todas do Oeste, andando a cavalo e jumento, subindo e descendo serras, usando essa batina preta e grossa, com 40 graus de calor, quero concluir, dizendo: - Se esse tal de céu não existir, ô tabocada que eu levei... Isso sem esquecer os votos que fiz e cumpri fielmente: o da castidade, pobreza e obediência".

É demais para um pobre vivente - mesmo sendo Servo de Deus. Hoje, obviamente, mais difícil ainda.

10 comentários:

assis freitas disse...

O repeteco que eu não conhecia é por demais sapiência das boas. Abraço.

líria porto disse...

dizer que não gosto de padres, assim, no geral, é preconceito - então, no particular, gosto de algum - esse padre mota bem eu ia apreciar - pela sinceridade e sabedoria marcou pontos!

renascença e silhueta, dois poemas dos bons.

besosssssssssssss

ah, o monte pascoal, bem contornado como peito de moça! bonito! avistado pelos descobridores, não foi casualmente...

Marcelo Novaes disse...

Moa,




São muitas as silhuetas do Celso, a se julgar por essa (mui bela) passagem:


Um cão mistura-se à poeira,
gane, rasteja para as sombras,
perscruta o enigma, corre e some.

Na fronteira da noite, surge o dia,
a tarde ensolarada, e um gemido
libera o sentimento que o prendia.




A Adrianna está retomando o prazer da escrita, e a chuva está lavando as calçadas.




Os padres supracitados exemplificam como alguns deles podem ser gente boa...










Abração,










Marcelo.

Unknown disse...

Oi Moacy!

Claro, óbvio e evidente que o monte Pascoal é o Pico de Cabiji!

Poemas todos lindos com destaque para Adsriana Coelho!

Quanto ao repeteco, que para mim é novidade, adorei! Principalmente a do Vitorino Freire!

Beijos

Excelente dia

Mirse

Adrianna Coelho disse...


Oi, Moa

Ernesto Sábato, com sua definição de poesia, foi perfeito.
Silhueta, do Japiassu, até pode ser lida fragmentadamente em seus tercetos, que continua de uma grande beleza.
Humano, demasiado frágil... Bem, chega a ser redundante, mas verdadeiro. E é ótimo. rsrs

Também agradeço o seu olhar sobre o que escrevo, porque é sempre uma força, um incentivo. Eu estou voltando aos poucos... :)

Curta bem Natal, viu.

beijão

Mme. S. disse...

Moa, se essa provocação inicial do monte pascoal tem a ver com as teorias do Lenine Pinto, eu concordo. Se não tem a ver, eu concordo do mesmo jeito. (o Brasil é nosso).
Um cheiro grande, S.

Jens disse...

Moacy, depois dos infortúnios domingueiros - teu Flu aí e meu Inter no Paraná -, o melhor é esquecer o futebol e rir com as matreirices do Humano, demasiado frágil.

Um abraço.

Moacy Cirne disse...

Cara SHEYLA:

De fato, resolvi ler com atenção as "provocações" de Lenine Pionto. O que, no início, me parecia maluquice do escritor potiguar hoje, acho, deve ser levado a sério, sem necessariamente concordar com ele. Pelo menos, por enquanto. Devo escrever a respeito, brevemente.

Um beijo.

BAR DO BARDO disse...

Sim... tudo poesia...

Pedrita disse...

gostei muito do poema da adrianna coelho. beijos, pedrita