segunda-feira, 18 de maio de 2009

Imagem gráfico-digital do Universo:
autoria desconhecida


BALAIO PORRETA 1986
n° 2665
Rio, 18 de maio de 2009

O que há de mais perturbador sobre Javé é a atitude bastante ambivalente que ele demonstra diante da sua própria criação. Para um Deus todo-poderoso - ao contrário de Zeus e Odin -, Javé mostra-se perpétua e supreendentemente aflito. Todo leitor da Bíblia compreende logo que os atos de Deus
não são previsíveis.

(Harold BLOOM. Jesus e Javé - Os nomes divinos, 2005)


O LIVRO DOS LIVROS
(29)

Texto estabelecido por Moatidatotatýne, o Escriba

A tristeza do Senhor das Alturas

E deu-se que o Senhor das Alturas, o Galalau(¹), o Sem Fim(²), o Cabra Macho, chorou amargamente por seu amigo Moysés Sesyom do Sertão. E errou pelas matas e roçados como um caçador desesperado e vagueou pelas planícies sem horizontes, da Serra de Samanaú à Serra de Mulungu. Quando apareceu, então, o Senhor das Sombras, que lhes disse: "Compreendo a tua tristeza, de proporções místicas, mas o teu Escriba, decerto com a tua permissão, não precisa copiar para a posteridade a epopéia de Gilgamesh(³)".

E o Senhor das Alturas, ainda choroso, respondeu, dando-lhe o maior esporro: "O que entendes por plágio? Nada! Será que não compreendes que tudo o que já foi escrito e escrito será passou, passa e passará pela minha concretude intangível enquanto Ser Superior? O meu Eu Serei o que Eu Sou inspirará Cervantes e o Dom Quixote, Dante e A divina Comédia, Shakespeare e o Hamlet, Câmara Cascudo e o Canto de muro. Moysés foi um dos meus mais queridos amigos e nada mais terrível do que uma solidão eterna".

"Mas o Moysés Sesyom do Sertão, morto, morto-mortinho-da-silva, morto e bem enterrado, de qualquer modo não estará, como espírito e essência, ao teu lado, hem, hem?", indagou-lhe o Senhor das Sombras, com um sorriso deveras zombeteiro. E o Senhor das Alturas, ainda acabrunhado, disse: "Não me venhas com miolo-de-quartinha(ª¹). Sabes muito bem que a questão é muito mais séria e complexa do que possamos imaginar. Como dirá um antropólogo do futuro, trata-se de uma faca de dois legumes(ª²)".

Dito isso, e seguindo os passos da epopéia de Gilgamesh, o Senhor das Alturas correu o mundo selvagem, assustando onças, cangaceiros, quengas(ª³) e lobisomens, urrando de dor e tristeza; e vagou pelos campos e pastos em busca de paz interior. E a encontrou, já no Monte do Galo, em Carnaúba, a dos Dantas. E de lá, mais calmo, voltou para a Serra do Mulungu: a serra que, como em Gilgamesh, guardava - e guarda - o alvorecer e o entardecer de todo o Seridó. Já o Senhor das Sombras, entediado, resolveu partir para o Beco da Lama(ªª¹).

E o Senhor das Alturas, do alto da Serra de Mulungu, meditou. E meditou. E meditou. E concluiu que chegara a hora de prestigiar o reinado de Josué dos Santos Oberdadan. E também concluiu que, para afastar de todo a tristeza, era preciso sacudir o esqueleto no primeiro rela-pimba(ªª²) que encontrasse. E assim o fez. E o Senhor das Alturas foi espiar, animado que só vendo, o Forró da Lua, lá pros lados da capital. E lá o Senhor das Alturas encontrou a bailarina Civone Medeiros. E os dois dançaram a noite inteira, até o sol raiar.

E mais O Livro não dirá. E mais não diremos. E mais não será dito.

Próximo capítulo:
A conquista do Seridó

Notas:

(¹) Galalau : Sujeito muito alto, sujeito altíssimo. Um exemplo: o "Anão" de Jardim do Seridó, em pleno séc. XX da Era Comum, com mais de 2m de altura (204cm, mais precisamente).
(²) Haveria aqui alguma referência mística à Cabala? Alguns, a partir da leitura de Os elementos do caos (Miguel Cirilo, séc. XX da Era Comum), acham que sim; outros, a partir da leitura de As cores do dia (Luís Carlos Guimarães, igualmente séc. XX da Era Comum), acham que não. De qualquer modo, o tema será amplamente discutido no Concílio Caicó 1748 EC.
(³) Epopéia de Gilgamesh : Narrativas lendárias anteriores ao própri'O Livro dos Livros.
(ª¹) Miolo-de-quartinha : Conversa mole, conversa sem futuro, conversa sem sustança.
(ª²) Filósofos, esportistas, catimbozeiros e teólogos discutiram - e ainda discutem - amplamente o significado de tais palavras: 1. A expressão "faca de dois legumes" teria conteúdo esotérico e somente aqueles que mergulhassem no Poço de Santana, em Caicó, alcançariam o seu significado mitológico e forrozeiro; 2. A expressão seria uma referência não-explícita ao Cai Pedaço, famosa zona de baixo meretrício na citada Caicó; 3. A expressão teria conteúdo político de alcance bipolar paradigmático/paradogmático, cuja materialidade ontológica passaria pela compreensão dos cordões encarnado e azul em festas de cidades do interior.
(ª³) Quenga : Prostituta reeira, prostituta de quinta categoria; o pior dos insultos dirigido a uma mulher, seja ela meretriz ou não.
(ªª¹) Não está n'O Livro, mas se supõe que, no Beco da Lama, em plena Cidade dos Reys, o Senhor das Sombras, ao lado de Alexandro Gurgel e outros, divertiu-se pra valer.
(ªª²) Rela-pimba : Rela-bucho, forró.

6 comentários:

líria porto disse...

isso eu merecia - um rela-pimba, um forró na lua!!
obrigada pelo riso matutino!!
besos

Unknown disse...

Moacy:

Gostei de ver o Senhor das Alturas dançando a noite inteira sem parar (que nem Zé Macaxeira, do "Coronel Antonio Bento"): lembrou Nietzsche e os deuses que dançam.
Abraços:

Marcos Silva

Unknown disse...

Bom dia, Moacy!

Preciso ter sempre o dicionário à mão. Adorei o miolo de quartilha!
E vou usar!

Uma pergunta, ao Sr Escriba: Porque somente Elias foi arrebatado? Já que Moyses ajudou tanto não poderia ter sido?

Particularmente, não gosto de Javé, ou não compreendo.

Mas como sempre você se supera e me faz sorrir e muito!

Parabéns, Moacy!

Muito bom!

Beijos

Mirse

Lívio Oliveira disse...

Prossegue a saga de Moati...
Abraços!

Lívio Oliveira disse...

Por falar nisso, tenho inveja dos personagens...

João Quintino disse...

Muito bonita a referência à Mulungu, Moacy. Saudações seridoísticas!