sábado, 28 de novembro de 2009

Cartão postal antigo,
de origem francesa


BALAIO PORRETA 1986
n° 2853
Natal, 28 de novembro de 2009


ÚMIDA
Mariza Lourenço

nua e linda
em tuas mãos
sou líquida


ESTIVE DESLIZANDO
Lívio Oliveira


Estive deslizando na seda do teu corpo
onde encontrei, em gotículas de suor,
o brilho cristalino
que fez meus olhos transbordarem.

Tudo sorvi:
prazeres, encantos.
Ampliei-me na maciez de tua pele,
razão única de tecer a teia
na qual me joguei sem medo.

Busquei teus segredos mais inóspitos
e encontrei, cedo, o sonho guardado,
brinquedo que herdei na madrugada,
saciando uma vontade tensa
que se envolvia de perfumes, carícias.
Até mesmo uma dor inexplicável surgiu.

A língua tateava no escuro,
havia chegado a um ponto úmido,
quente, doce,
oásis descoberto.

FLANELINHA
Marconi Leal

[ in Culturando ]

- Pronto. Deixa solto. Quatro estrofes de Drummond, chefia.
- Como é que é?
- Pra parar o carro aqui, quatro estrofes.
- Tá louco, ô, moleque? Semana passada, eu parei nesse mesmo lugar e só tive que recitar cinco versos de Bandeira!
- O preço é tabelado, chefia. A gente temos sindicato e tudo. Se fizero esse preço pro senhor, esse sujeito deve de ser denunciado. Tá vilipendiando a arte.
- Três estrofes e não se fala mais nisso, ok?
- De João Cabral?
- Peraí, não era de Drummond?
- Quatro de Drummond, três de João Cabral. Sabe como é, o homem concorreu ao Nobel…
- Tá, tudo bem, eu recito Cabral, mas…
- Recitar, não. Dizer. Cabral não gostava que recitassem.
- Ótimo. Eu digo os três versos de Cabral…
- Estrofes.
- Tá, tá, as três estrofes. Mas só quando voltar.
- Aí, não. A última vez que confiei num sujeito que disse isso, na volta, ele só me recitou um Décio Pignatari ou um Campos desses aí… Sem falar em outro que quis me fazer engolir um Arnaldo Antunes. É pagamento na hora.
- Meu filho, eu tô atrasado, não tô com nenhum verso trocado, só lembro de poesia inteira. Quando voltar, lhe recito.
- O senhor é que sabe. Agora, não me responsabilizo se aparecer uma pintura pós-modernista na lataria do seu carro…
- Tá me ameaçando, moleque?
- Eu? Eu, não, nem de arte pós-moderna eu gosto, prefiro o traço clássico, sabe? Pintura figurativa… Mas o senhor sabe como esse pessoal é. Outro dia mesmo deixaram um fusca aqui sem eu ver. Quando o dono chegou, tinham feito uma instalação em cima, colocado uns guarda-chuva no teto, uma televisão velha no lugar do capô, essas coisas. O carro não prestou pra mais nada. Foi recolhido pelo Masp.
- Essa é boa! Esse povo podia assistir televisão, tocar pagode, jogar bola, mas não, vem pra rua esmolar literatura. Nem se divertir em paz a pessoa pode mais. Aposto que eu vou te dizer esses versos, tu vai se inspirar e fazer poesia pra vender em bar.
- Vou não, chefia. É só pra minha necessidade mesmo.
- Pensa que eu não sei? Tu vai vender poesia em bar, moleque.
- É não, é só pra meu consumo mesmo, eu juro.
- Tá, na volta. Já disse, na volta eu recito.
- Então, vai ter que ser Baudelaire
- Baudelaire? Por conta de uma ou duas horas a mais?
- Ou Rimbaud, o senhor escolhe.
- Ah, não! Que absurdo! Só porque tem carro, esse pessoal pensa que a gente é rico, que decora uma Ilíada por ano! Fique sabendo que eu mal sei de cor o Inferno da Divina Comédia, meu filho! Mas, tudo bem, a culpa não é sua. Acordo fechado. Na volta, te recito Rimbaud.
- Em francês, tá, chefia?

8 comentários:

Unknown disse...

Flanelinha gente boa esse aí. Mas acho que o coitado iria morrer à mingua. Se esse real fosse a fantasia do dia-a-dia.

Pedrita disse...

eu adoro esses cartões postais antigos. beijos, pedrita

NAMIBIANO FERREIRA disse...

Oba, o Balaio tá de volta!!!
Kandandu e bom final de semana

nina rizzi disse...

eu era como essa moça no balanço: estar nua e sorrindo e olhando não era o bastante, mas era suficiente pra sonhar...

atriz é o que quiser, né, fala té russo.

um beijo e bom final de semana.

Dilberto L. Rosa disse...

Claro que estou muito aquém, mas, assim como João Cabral, nunca apreciei que meus versos fossem recitados... Prefiro a Poesia com seu dizer natural! Genial este texto, tão bom fossem assim nossos famigerados flanelinhas donos das ruas... Abração!

Anônimo disse...

Oi Moacy!
Fiquei sabendo que vc estava dódoi. Espero que tudo esteja ótimo agora.
Bjs querido.

Jens disse...

Oi Moacy.
Bom retorno, camarada. Cada vez mais firme e forte é o meu desejo. Quanto ao bom gosto e o olhar acurado para garimpar bons poemas, percebo que continua o mesmo: especialmente encantadores os econômicos versos da Mariza Lourenço.
Achastes as coisas estranhas lá na Toca? Deve ser o efeito ainda da anestesia, hehehe...

Um abraço. Te cuida.

Lívio Oliveira disse...

Feliz de estar aqui, no meio de tanta gente e tantos textos bons.
Abração.