segunda-feira, 9 de novembro de 2009

Imagem:
RetroAtelier


BALAIO PORRETA 1986
n° 2837
Natal, 9 de novembro de 2009

Existem cinco elementos: o ar, a terra, a água, o fogo
e a pessoa amada.

(Murilo Mendes. O discípulo de Emaús, 1945)


ELEGIA PARA ZILA MAMEDE
Luís Carlos Guimarães
[ in O fruto maduro. Natal, 1996 ]

Sabias que morrerias no mar.
Assim seria, disseste sem medo
em canção e elegia. Acreditar
só acreditamos quando tão cedo

partiste: a morte - como anunciada -
boiava à deriva no corpo morto
e pela luz da manhã revelada
lançou a âncora no último porto.


DUAS QUADRINHAS POPULARES
DO RIO GRANDE DO SUL
[ Fonte: Sílvio Romero, 1883 ]

Não te encostes na parede,
Que a parede larga pó;
Encosta-te nos meus braços,
Que esta noite dormi só.

Menina dos olhos grandes,
Olhos grandes como o mar,
Não me olhes com teus olhos
Para eu não me afogar.


POEMA de
Pablo Capistrano
[ in Substantivo Plural ]

minha fome
desperta a fera
que teu olhar
revela


MARATONA
José Bezerra Gomes
(Currais Novos, RN)

Um menino
corredor
corria
correndo
para a sombra
para a sombra
de um pássaro


EXERCÍCIO DA CRUELDADE
Zémaria Pinto
[ in Fragmentos de silêncio. Manaus, 1995 ]

palavras são serpentes, são navalhas
são balas que explodem dentro do peito
de quem ouve e de quem fala!


ESTRANHOS SEMELHANTES
/ fragmentos /
Moacy Cirne

Comunicação apresentada, em maio de 2007,
no seminário Segregações,
do Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos,
no Rio de Janeiro

Dezembro de 1959: pela primeira vez, em meus 16 anos, ou um pouco mais, à beira dos 17, encontrava-me longe da minha região. Encontrava-me em São Paulo, passando as férias escolares de dezembro/janeiro na casa de uma tia - a tia Geralda. E não entendia como seus amigos e vizinhos me chamavam de "baiano", se eu sequer conhecia a Bahia. Ou, então, por que me apelidavam de "nortista", quando o Rio Grande do Norte, apesar do nome, era seguramente um Estado nordestino. E se eu os chamasse de "paranaenses" ou de "gaúchos"? Qual seria a reação deles?
(...)
Mais e mais, a possível ignorância paulistana em relação ao Nordeste não me parecia propriamente preconceito - de resto, uma idéia que, à época, me era estranha. E só uma vez fiquei irritado com aquela situação: quando uma senhora me perguntou, com a cara mais inocente do mundo, se na "Bahia" a gente tinha emissoras de rádio. (Ela não ousara perguntar se tínhamos canais de televisão; registre-se que não os tínhamos, na ocasião.) Respondi-lhe, com ironia: "Emissoras de rádio? Nunca ouvi falar! Aliás, também nunca ouvira falar em cinema, só agora conheci um: que coisa mais estranha, não? Aquelas pessoas todas se agarrando, se beijando, ou então brigando umas com as outras, ou correndo feito loucas, nunca vão ao banheiro, não almoçam direito, não sabem dançar xaxado, não conhecem o valor do silêncio. Que coisa mais estrambótica. Na minha terra não tem dessas esquisitices não". Até hoje não sei o que ela achou da minha resposta, se a levou a sério ou não, se me considerou doido varrido ou não.
(...)
Algumas indagações se fazem necessárias, neste espaço e neste agora: terei sentido na pele o famoso "choque cultural" que nos dividia? Em algum momento, deixei de ser "baiano" para me tornar "paraibano", em tom preconceituoso? Ora, todos sabem da minha admiração pela Paraíba e por Pernambuco, sobretudo, entre os vários Estados nordestinos. Temos semelhanças, mas igualmente diferenças profundas. A nossa maneira de sentir, de olhar, de falar, de amar, tem nuanças particulares. No próprio Rio Grande do Norte há consideráveis diferenças entre o homem do litoral, na região da Grande Natal, e o sertanejo do Seridó, sem contar com as outras regiões. ... Como, então, não vivenciar as diferenças entre o Sul Maravilha e o Nordeste Glorioso? Não seriam vivências que se existencializam com o tempo? Como lidar, pois, a partir de nossas memórias afetivas, com essa imponderável existencialidade que nos arrebata e nos faz sonhar?
(...)
Talvez eu fosse um bicho-do-mato, arredio que só a mulesta, mas, decididamente, se eu era um estranho, era um estranho entre estranhos: doces e inquietos estranhos que ficávamos horas nas filas do Paissandu para ver o último Godard, ou o último Bergman, ou o último Buñuel; deslumbrados e inquietos estranhos que pesquisávamos as histórias-em-quadrinhos e suas manifestações gráficas e culturais; loucos e inquietos estranhos que ousávamos enfrentar a fúria dos militares encastelados no Planalto Central; apaixonados e inquietos estranhos que, tricolores, vibrávamos, no Maracanã, com as vitórias do time de Cartola, Chico Buarque, Tom Jobim, Mário Lago, Sérgio Porto, Tio Silvino, Tio Walfredo e Nelson Rodrigues; libertários e inquietos estranhos que fundávamos o poema/processo, contra o poder literário constituído, espantando pela radicalidade. E se é verdade que a solidão e a timidez dos primeiros anos no Rio doíam um bocado, e se a saudade do cheiro da terra molhada do sertão e o ardor distante das mulheres amadas de Caicó e Natal pesavam como navios flamejantes e nuvens grávidas de crepúsculos, também é verdade que as diferenças aqui vividas e sentidas abriam espaços para a liberdade intelectual e criadora que me interessava.

E nelas mergulhei.
E nelas me encontrei.
E nelas me tornei mais e mais nordestino.
Mais e mais norte-rio-grandense.
Mais e mais seridoense.
E mais brasileiro.

20 comentários:

BAR DO BARDO disse...

Fiquei bastante comovido com a MARATONA, de José Bezerra Gomes.
Economia de recursos e gastança de lirismo.


Os textos, em geral, muito bons!
Bom dia a todos!

Mme. S. disse...

O seu texto é tão rico Moacy. Fluido como uma cascata de ideias. Adoro ler você. Bom dia, S.

Jefferson Bessa disse...

Sim, Moacy! Num mesmo compasso, mergulhando e encontrando as raízes. Muito bonito!

Abraço
Jefferson

nina rizzi disse...

O pesoal das "bandas lá de baixo", não têm essa nossa identidade, eles não se vêem "sudestinos"... quando reencontro um velho amigo em viagens por lá, pensam que eu moro no meio do mato... quando vim pra cá, minha filha tinha 1 ano e me diziam: ai, não deixa ela pegar aquele sotaque horroroso, ao que eu respondia, tomara é que não pegue esses preconceitos... bem, minhas observações a esse respeito dariam uma postagem. deixa pro futuro (a minha praia).

hoje sou água. portanto, fico com a segunda quadrinha, lendo com esses olhos grandes.

ah, e que peitinho, hm? hehehe...

Francisco Sobreira disse...

Muito boa, velho, a sua postagem. Desde a foto (que, salvo engano, você já tinha colocado), os poemas de Luís Carlos, de JBG e, pra rematar, essa reflexão sobre como o nordestino é visto pelo sul e sudeste. Acho que existe um preconceito, embora não seja generalizado. É isso. Um abraço.

Anônimo disse...

Nove de Novembro

Caiu
Trouxe uma pedra
O portão
Brandeburgo
Mortes

Do outro lado
Uma boneca
Matrioska
Ópera de Berlim
A arte salva

No muro
Pinturas
Horror
Irmãos separados

Picaretas derrubam o muro
Picaretas governam o mundo
Os homens são loucos
Para entrar

Por cima de ossadas
Um canteiro de obras
Enganam-se vocês amigos
Padres pedófilos
Prostitutos
Pobres
Moralistas
analfabetos

O muro não caiu

DAMATA disse...

Caro Moa,

O poema acima é meu.
Desculpe o erro nas postagens
Ontem enviei um outro poema e saiu como se fosse enviado por outra pessoa

Abração e parabéns pelo Blog

Joao da Mata Costa

Canto da Boca disse...

Olá, Moacy, minha 2ª feira começou agora, plena de poesias e encantamentos. O seu texto que grandeza emocional e cultural, eu fico 'passada' como ainda hoje poucas coisas mudaram e penso que o diálogo, o debate, o conhecimento é o caminho para se 'desfazer tanta falta de conhecimento' desse imenso país-continente. E sempre sugiro aos que nos desconhecem, que comecem a nos conhecer, pelo livro do Durval Muniz de Albuquerque Jr, A Invenção do Nordeste, pelo O Norte Agrário e o Império, do Evaldo Cabral de Melo (ainda falo, sim, ele é irmão do João Cabral de Melo Neto), já dá pra ir começando, né?

Em seguida, o poema do Murilo Mendes, sábado eu estava a ler a tese de um amigo, exatamente sobre a poética do Murilo.

"O Exercício de Crueldade", é de uma beleza certeira, aquela na medida, que não extrapola as 'duas polegadas a mais'.

O poema de Pablo Capistrano, é uma pedrada na indiferença, sacode a gente com uma força descomunal.

Todos os textos postados são impecáveis.

Um abração e ótima semana!

Unknown disse...

O que nos faz divinos é a singularidade. Vivamos pois as nossas diferenças.

Sandra Porteous disse...

Moa, li seus fragmentos de memória como se estivesse lendo um poema. Gostei muitíssimo. Sandra

Cosmunicando disse...

você é incrível, moa... que texto bonito, que vida bonita :)
um beijo.

Marcelo Novaes disse...

Moa,


Os poemas são bons. O depoimento é bem medido e faz jus ao vivido. Vc soube vivê-lo e medi-lo.




Um abração,








Marcelo.

nydia bonetti disse...

Este balaio hoje convida a um mergulho. Bom demais, Moacy. beijos.

Felipe Costa Marques disse...

bom demai2

Eleonora Marino Duarte disse...

mestre moa,

uma "leva" de textos excelentes!

o texto "Estranhos Semelhantes" é maravilhoso!

fiquei bastante emocionada com ele-você!


um beijo!

Dilberto L. Rosa disse...

Mulher estonteante e timidamente bela numa foto soberba! Que arquivo este teu! E é uma pena que muitos brasileiros do eixo Sul-Sudeste ainda se indetifiquem neste perfeito texto teu acerca da não-vivência da infinidade rica de nuances de nosso povo universal! Abração!

NAMIBIANO FERREIRA disse...

Parabéns pelo seu texto "Estranhos Semelhantes", adorei meu caro amigo, quantas reflexoes sobre estas e outras coisas e da mania que as pessoas tem de por rótulos e se arvorarem em superiores...
Kandandu

líria porto disse...

estranhos semelhantes - fiquei comovida...
besos

Nivaldete disse...

Em BH, início de 1980, fui tratada como 'baiana' também, numa livraria. "Atenda aí a baiana", disse o vendedor.E um garoto da minha vizinhança confundia Natal com Belém... Depois, trouxe algumas pessoas pra cá. Ficaram espantadas com tanta água de coco, tanto mar, tanto mar... Uma disse: "a gente pensa que aqui só tem menino barrigudo da perna fina". E contaram de uma turista do sudeste que, ao vir aqui pela primeira vez, trouxe na bagagem um rolo de papel higiênico...Claro, isso foi lá pelos anos 80... Mas poucos dias após a 'queda das torres', num congresso em Londrina, uma professora da UFRJ, achando que o Brasil iria socorrer os 'sem torre',disse isto: "Agora haverá menos dinheiro pra fome do nordeste"... Por tudo isso, prefiro a teoria das serras, como postei lá no meu bloguinho...

Dilma Damasceno disse...

Olá!

Eclético,
Caudaloso,
Original,

"Balaio Porreta”,
- um grandioso acervo de
conhecimentos,
informações,
e memórias!

Atentamente,

Dilma Damasceno
http://janeladaminharua.blogspot.com/