quarta-feira, 27 de junho de 2007


Contemplo a vida
Por curiosidade
Por sede
Pelos rasgos
Que marcam
Constroem
Demolem
Modificam
Concepções...

(CASTI, in Teia de Palavras)

Foto: Mário Bitt-Monteiro









BALAIO PORRETA 1986
nº 2047
Rio, 27 de junho de 2007



PERSONAGENS PREFERIDOS
Nei Leandro de Castro
[ in Tribuna do Norte, Natal, 22/6/07 ]

À noite, os meninos vinham se chegando e paravam na calçada da rua Professor Zuza, quase esquina com a rua da Estrela. Eram egressos de muitas molecagens: atirar de baladeira em rolinhas, caçar os pombos do seu Petit, brincar nas águas do Potengi, furtar mangas e cajus dos quintais alheios, jogar peladas. Mais duro do que tudo isso era o sacrifício de horas e horas sentados nos bancos escolares. Quando a platéia já era razoável, chegava Pedro Bala, não o jogador famoso, mas o contador de histórias. Velho, moreno, baixo, ela assumia o seu papel no palco da calçadas, rodeado das crianças. E aí começavam as aventuras que iam sendo narradas em voz baixa, com o narrador dando pausas, fazendo suspense, prendendo a platéia, enquanto os meninos prendiam a respiração. Geralmente eram histórias de espantar. Como aquela do diabo que entrava numa casa pelo teto e ia caindo aos pedaços. Depois as partes do Tribufu se juntavam e ele partia para destruir quem estivesse na casa visitada. Os meninos, até os mais valentes, se arrepiavam de medo com aquelas histórias tão bem contadas. A maioria iria ter pesadelos, mas no dia seguinte todos voltavam a ouvir as histórias de Pedro Bala. No meu medo, nas minhas fantasias, eu achava que Pedro Bala era o Cão em figura de gente. E o que ele contava eram lembranças do que havia feito pelo meio do mundo. O Cão tinha muitos disfarces e um deles podia ser daquele bruxo que se fazia de pobre, de manso, de amigo das crianças.

O galego Assis era outro contador de histórias, mas todos os casos eram centrados nele mesmo, no seu destemor, na sua fúria contra os inimigos, na invencível armada dos seus punhos. Era brigão, não admitia qualquer insinuação que ele estivesse, digamos, aumentando um pouco as suas proezas. Teimoso, birrento, certa vez foi carregar uma lata de soda cáustica no ombro. No meio do caminho, notou que a lata estava furada e a soda cáustica queimava as suas costas como um ferro em brasa, uma chama viva. Andou ainda uns dois quarteirões e quando chegou ao seu destino havia uma queimadura que ia de um dos seus ombros até a cintura. Tudo em carne viva. Ao ser perguntado por que não largara a lata, ele respondeu, furioso: “Eu queria saber quem era mais forte – eu ou a fela da puta da soda cáustica.”

Umas das boas histórias do galego Assis se passava na sua infância, quando ele tinha cerca de dois anos de idade. Num começo de noite, ele estava brincando no alpendre quando uma raposa o atacou pelas costas. O menino deu um grito, o pai acudiu e se atracou com o bicho. Assis disse que foi uma briga bonita. Lá pras tantas, o pai segurou a raposa pela garganta e a jogou no chão. O bicho reagiu, levantou-se, mordeu a mão do pai, que o derrubou outra vez. A raposa voltava a atacar, o pai fazia a mesma coisa, o menino vendo tudo de perto. Assis fazia uma pausa para dizer que tinha contado trinta e duas quedas da raposa, até ela estrebuchar e morrer. Alguém perguntava: “E você já contava com dois anos de idade, Assis?” O galego virava onça, dizia palavrões, chamava o perguntador para resolver a dúvida no braço, porque ainda não tinha nascido um macho com coragem de chamá-lo de mentiroso. Escondido em algum lugar, meu irmão Euclides gritava: "Mentiroso!" Assis tinha uma crise de fúria.

6 comentários:

Casti disse...

Mestre Cirne, texto danado de bom, cheiro de nossa infância!

cheiro,
Casti

Obs. Obrigada... Mesmo.

Anônimo disse...

O texto sempre magnífico de Nei!
Abração de Lívio

Anônimo disse...

Pois é, Moacy. A nossa vida primeira acaba sendo a infância... o resto se copia com os recursos que se aprende. Viva Nei Leandro de Castro que com a escrita deixa a gente "brechar" a sua infância,de encantamento, de contadores de histórias...
Um abraço, Lisbeth

Anônimo disse...

professor, me ajuda!
o trabalho é completamente impreterivelmente pra aula amanhã?
não consegui finalizar e não sei se vou...
não posso te entregar amanhã mesmo, mas por email à noite?
aguardo resposta e peço dez mil desculpas por peturbá-lo aqui.

e ah!
tem texto novo no blogue.
chegue!

beijos

Maria Maria disse...

Esse Galego Assis, anda pelas Pelejas de Ojuara e pelas terras insólitas de São Saruê. Êta, mundão chamado seridó! Beijos, Moacy

Jens disse...

Sensacional o texto do Neil de Castro. Me fez lembrar da infância e das histórias contadas por meu avô. Simplesmente belo. Belíssimo.