sábado, 19 de abril de 2008


Serras da Desordem:
da ficção ao documentário,
do documentário à ficção


BALAIO PORRETA 1986
n° 2290
Rio, 19 de abril de 2008



Primeira leitura
SERRAS DA DESORDEM

Os 15 minutos iniciais do filme reconstituem, entre a história e a antropologia, o modo de vida dos awa-guajá numa reserva indígena informal ao norte do país: os índios, velhos e crianças, homens e mulheres, brincam, observam, sorriem, "humanizam" a relação com a natureza. E falam. E falam. E falam. Não há tradução. Não há necessidade de legendas. Não há necessidade de maiores explicações "verbais". O que interessa para o diretor paulistano André Tonacci (que já nos dera os ótimos Blábláblá, curta de 1968, e Bangue-bangue, de 1971) é a interioridade de um sentimento cósmico que aponta para uma outra humanidade. Uma humanidade que compreende a Mãe-Terra mais do que todos nós.

Há também o silêncio, há também o saber do índio. Há também o nosso espanto diante de imagens tão belas. E tão viscerais. Recorramos a Ismail Xavier: "A primeira imagem de Serras da Desordem traz a figura de um indígena sozinho na mata, a preparar uma fogueira. A câmera segue de perto os detalhes de sua tarefa que evidencia um saber. A cena é longa: o silêncio e o capricho nas operações vão compondo o interesse especial pela situação ...". O teórico paulista, com propriedade, aproxima a obra de Tonacci com o clássico Nanook, o esquimó (1922), de Flaherty. Sobretudo porque os dois diretores transformam o real em ficção, mas uma ficção que se quer documento da realidade, uma ficção que se quer materialidade ontológica. Mas o que acontece depois das cenas iniciais?

Acontece o pior: a invasão do homem branco. E com a invasão, a supremacia da força bruta. E com a invasão, a delimitação de um espaço físico marcado pela cultura de elementos estranhos àquele lugar de vivencialidades demasiadamente humanas. E com a invasão, a morte: todos os índios são massacrados. Com exceção de um: Carapiru. Estávamos em 1977. Mas só em 1988 o fato tornou-se conhecido. Aqui, o filme se faz História, a História se faz Antropologia, a Antropologia aposta formalmente no Cinema. Reescrever a "história particular" de Carapiru, sua luta pela sobrevivência no meio de pessoas alheias ao seu modo de pensar, seu contato com a FUNAI, seu encontro com um sertanista de Brasília, sua volta para a sua gente, é reescrever o alcance do cinema-documentário enquanto estética, enquanto antropologia. Neste sentido, Serras da Desordem (2006) é um marco.

Um marco porque procura se colocar no lugar do Outro, sem ser o Outro. E é também um marco num sentido mais especificamente cinematográfico: por redimensionar o "tempo histório" da ação (que recorre à época da ditadura entre nós, através de cinejornais de 1968-74, mais ou menos) e pela transformação de caboclos e índios (a começar pelo próprio Carapiru) em verdadeiros "atores naturais". Da encenação inicial ao documento final, quando o diretor Tonacci aparece em cena, o filme se constrói de maneira quase mágica. Mesmo considerando que "Serras da Desordem termina com uma justaposição contundente, em nada ajustada à pureza do registro documental. Era preciso, ao lado do encanto e do mistério, encontrar a imagem que condensasse a imensidão do problema" (Ismail Xavier. As artimanhas do fogo, para além do encanto e do mistério, in Serras da Desordem, de Daniel Caetano [org.]. Rio de Janeiro : Azougue, 2008, p.11-23).

Nota:
no Rio, depois da pré-estréia no Odeon, Serras da Desordem entrou em cartaz no Estação/1.

5 comentários:

Anônimo disse...

Moacy.

Está fazendo falta um RSS no teu blog. Eu leio todos os blogs no Google Reader, mas não consigo cadastrar o teu, que é tão importante para mim!

Abraço.

Francisco Sobreira disse...

Moacy,
Uma análise bem-feita, bem escrita, de um filme que está sendo bem recebido pelos críticos/cinéfilos, conforme tenho visto na Net. Um abraço.

Jens disse...

Não vi, mas quero ver - só o título já é tri-bom: Serras da Desordem.
***
No mais, hoje, domingão, é dia do Fluzão de novo; com cinco árbitros! Pô!!!!
***
Um abraço.

Anônimo disse...

Nossa, Moacy! Deve ser muito interessante esse filme. Fiquei curioso. E a ótima análise sobre o filme desperta a vontade de também assistir a esse marco "porque procura se colocar no lugar do Outro, sem ser o Outro".. Gosto muito dessa ambiguidade - "real-ficcção"... "atores naturais"... Obrigado por mais uma aula. Um grande abraço! Ah! Estive no norte do país faz algum tempo, e fiquei muito impressionado com o pouco que vi daquele cinema real: é um outro Brasil, um outro mundo, uma outra panorâmica! É preciso ter mais do que uma lente grande angular na visão... As noites são longas e os dias - letos!

Cinecasulófilo disse...

Realmente excelente o filme do Tonacci... senti falta de vc na mostra do Candeias... um abraço...