domingo, 15 de março de 2009

BALAIO PORRETA 1986
n° 2598
Caicó, 15 de março de 2009


HIBERNAÇÃO
Hercília Fernandes

É inverno.
A chuva cai servil
sem trégua
enquanto meu peito solitário hiberna
o gosto estatutário das ruínas,
das quimeras...


CAICÓ, ALEGRIA E TRISTEZA

Caicó sempre emociona. Reencontrá-la sob um céu cinza-chumbo-alumbramento prenunciando a chuva (que viria à noite), alegria maior do sertanejo, não é para qualquer (sobre)vivente. Sim, é verdade, ainda sou capaz de ver a Caicó de hoje com os olhos da criança - e do adolescente - que fui nos anos 50. Suas pedras, seus serrotes, seu casario, suas águas, suas ruas, seus becos, seus mistérios, suas alumbrações. E suas mulheres. E seus doidos. E suas cercas de pedras. E seu seridoísmo. Ainda existirá a Caicó do meu tempo? Cadê o Cinema Pax? Acabaram com ele. Cadê a Praça Dr. José Augusto. Acabaram com ela. Cadê a Festa dos Negros do Rosário? Ao que consta, sumiu do mapa. E curto é o caminho que vai da alegria à tristeza.

A destruição do nosso espaço visual urbano não começou hoje, é preciso reconhecer. O poder público em Caicó (assim como a sua elite econômica) é criminosamente insensível em se tratando do patrimônio histórico-arquitetônico da cidade. Nos anos 80 do século passado, permitiu a destruição do belo casarão que, na Praça da Liberdade, abrigara, no final do século XIX, a redação d'O Povo, primeiro jornal republicano do Estado. E agora, para completar, está reformando de maneira absurda o Mercado Público, inaugurado em 1918, desfigurando quase por completo a sua tradicional fachada. Assim como está desfigurando a Praça Dr. José Augusto, que de praça não tem mais nada. Em nome de um discutível "progresso", já há vários espigões que enfeiam a nossa Queicuó. Será que, mais cedo ou mais tarde, o poder público ousará destruir a Praça da Matriz? Ou o coreto da Praça da Liberdade?

Pobre Caicó! E pobre da cidade que não preza (e não conhece) sua própria história. É o caso de se perguntar: cadê a "caicocidade" de sua gente?

15 comentários:

Maria Clara disse...

Moacy,

estava passando no espelho da H.F. (Hercília) quando me deparei com o seu comentário e vim correndo lhe visitar.

Muito boa a sua postagem, o poema "Hibernação" da Hercília configura bem como epígrafe em sua postagem.

Conheço o Seridó já há algum tempo e sempre que tenho oportunidade de revisitar as suas cidades, percebo como as paisagens têm modificado - à luz do avanço e da modernidade?...

Enquanto a cidade se transforma e, gradativamente, se moderniza; perde-se uma dimensão central da cultura: a historicidade humana.

Muito bom esse número do Balaio, nos faz lembrar que sem "passado" o "futuro" inexiste.

Agradeço-lhe pela boa leitura!

Abraços,
Maria Clara.

Obs: Com tempo, convido-o para visitar o Simplesmente Poesia, constam uns belos sonetos inéditos do Henrique Pimenta.

Unknown disse...

Mocy:

Seu texto sobre Caicó é sobre mais que Caicó. Conheço pouco a cidade, minha irmã morou lá no final dos anos 60 e fui várias vezes visitá-la, nessa época. Minha mãe nasceu em Jardim do Seridó, que conheci um pouco mais, na infância. A destruição de referências patrimonialísticas é grave porque faz encolher partes das identidades humanas. Penso que a luta pela memória, com um projeto de futuro, é uma questão de primeira necessidade. Em Natal, onde vivi infância e adolescência, percebo perdas graves de lugares de memória. Nada contra os novos lugares, tudo a favor de não se eliminar a relação presente/passado.
Abraços:

Marcos Silva

Jens disse...

Pô Moacy, acabaste de relatar um crime que está acontecendo contra a memória do povo da tua cidade natal.
Ao contrário do que ocorre na Europa, por exempo, o Brasil não tem muito apreço pelo seu passado, daí o descaso dos governantes para com a preservação dos prédios históricos. Aqui, o fashion negócio é ser moderno: muito vidro, concreto, plástico e neon. Quem gosta de velharia é museu. Lembrei de um antigo sindíco do meu condomínio, que subsitituiu a grama da pracinha por asfalto. Quando o pessoal reclamou o fim da área verde, ele resolveu o problema com a rapidez dos insensíveis: pintou o asfalto de verde.
E f...
Um abraço

Theo G. Alves disse...

moacy,
currais novos não parece diferente quanto à preservação de sua memória. parece até mais voraz, parece querer livrar-se de sua própria história como se algo a envergonhasse.
é lamentável. é doloroso.

abraço!

Marco disse...

Pois é, caro mestre Moacy...
Nossos recantos de infância acabam se transformando, como bem disse Drummond, numa foto pendurada na parede e dói perceber que é só isso que restou. Quantas coisas lindas do Rio já foram engolidas pelo "progresso"? Belo texto. Carpe Diem. Aproveite o dia e a vida.

Anônimo disse...

oi, moacy!
gosto da poesia de hercilia.
quanto a nossa caicocidade, sinceramente, nao sei onde se encontra. sinto muita falta de um cinema (existiam tres). talvez, muirakitan possa nos ajudar a entender.
um abraço,
edjane

Mme. S. disse...

evocações de Moacy: memória, infância, sonhos, alumbramento de uns, indignação e saudades de outros. lindo - e um pouco triste -esse texto e essa visão de caicó, meu querido.

Maria Maria disse...

Todo o Seridó se perde na sua história (ou a perde). Um abraço,
Maria Maria

Anônimo disse...

Embora de longe eu também faço coro: Cadê a caicocidade dessa gente, que não sabe ver a beleza e a poesia das primeiras ruas, praças e casas de uma cidade? Meu abraço solidário.

líria porto disse...

o progresso é um atraso! obrigada pelo lindo texto - leva-me à minha terra lá no triângulo mineiro - é só cimento e quebra-molas...

besos

Unknown disse...

Infelizmente não conheço Caicó. Só pelo que o You tube mostra. Mas deve ser linda, pois seus potas como a Hercília devem honrar a cidade, assim como voce, que não si se é natural daí, do Rio, ou do além. De qualquer forma é sempre triste não preservar a memória de uma cidade.

Parabéns, Amigo

Abração

Mirze

Cosmunicando disse...

belo poema de Hercília, e o teu texto sobre a memória de Caicó pode ser generalizado (como já foi dito acima) pra tantas outras cidades brasileiras que vão perdendo sua história em nome de um progresso esteticamente e humanamente discutível.
beijos Moa

Odessa Valadares disse...

É triste saber que a cidade está se despersonalizando. Morei no RN por 16 anos, embora seja pernambucana. Estive em Caicó há uns cinco ou seis anos, pra visitar uma tia e adorei o lugar. Seu blog resgata lembranças maravilhosas da minha infância.

Sandro Abayomi disse...

Caro Moacy,

Soube de seu texto através do amigo comum Ailton Medeiros e te digo onde está a tal "caicocidade"...ela anda se perdendo por aí, em velocidade crescente...Está sufocada por debaixo da água poluída do Poço de Santana. Está espremida nas praças que perderam nomes e cores e ganharam o singelo e estúpido rótulo de "Praça da Alimentação"...Está perdida numa multidão que se sente orgulhosa de se dizer seridoense e não consegue explicar porque...
Tomei a liberdade de publicar seu texto no meu blog e logo depois postei um texto de uns 8 anos atrás sobre a "nossa" Praça da Liberdade, não tão alterada fisicamente, mas simbolicamente. Está no endereço: http://quixotesforrosebaioes.blogspot.com/2009/03/carta-aberta-praca-da-liberdade.html
Abraços,

Hercília Fernandes disse...

“cadê a "caicocidade" de sua gente?”

Excelente pergunta, Moacy.

Como caicoense também me angustia a velocidade das mudanças que incide na descaracterização de nossos patrimônios. Especialmente das praças públicas - como a Praça José Augusto que, em minha infância (por volta de 1977), acomodava um parque infantil à modelo dos parques infantis idealizados pela visão educacional do poeta Mário de Andrade -; de seus antigos casarões; de suas festas: antes, eventos para enaltecer a nossa cultura e historicidade; hoje, cartões de visita para entretenimento dos visitantes...

Nasci e passei boa parte da vida na Matriz de Sant’Ana, um lugar idílico devido as suas árvores centenárias, praças e casarões. É, portanto, com imensa tristeza que acompanho essas tais evoluções(?), diluindo em versos as ruínas & quimeras dessa tão sonhada modernidade...

Muito grata, querido amigo, pela citação do texto “Hibernação”. Pena que ainda não foi desta vez que nos conhecemos pessoalmente. Porém, noutra página da história, creio eu, esse encontro concretizar-se-á.

Forte abraço em Todos e Todas,

Hercília.