RepetecoPASSION, DE GODARD: MEMÓRIAS DE UM CINÉFILO[ in
Balaio, de 10 de julho de 2004 ]
Todos sabem da minha paixão pelo cinema de Godard; uma paixão antiga, iniciada em Natal, em 1962 (com
Acossado, de 1959), e que vivenciara os anos febris da Geração Paissandu (1966-1974), já no Rio. Uma paixão que se renova a cada novo filme ou a cada nova revisão. E como sou fiel às minhas paixões e às minhas coerências, continuo bastante fiel ao cinema de Jean-Luc Godard. Como ao cinema de Antonioni, de Bergman, de Welles, de Renoir, de Visconti...
E quarta-feira, no Espação 1, na Voluntários da Pátria, estarei revendo uma de suas obras mais sensíveis e estimulantes:
Passion, de 1982. Jacques Aumont, no livro
O olho interminável [cinema e pintura], publicado no Brasil pela Cosac & Naify, em belo estudo, a partir desse filme, afirmaria que Godard é "O único a conhecer a solidão do pintor, o último, talvez, a acreditar ainda nos segredos da invenção criadora" (p.237). Talvez seja um exagero: o atual cinema de Alexandr Sokúrov, por exemplo, também aposta nos segredos da mais pura criação.
Mas voltemos ao que interessa. Eu disse: estarei revendo, mas seria melhor dizer: estarei
vendo. Deixe-me explicar: quando o vi, em setembro de 1986, logo após o surgimento do
Balaio, um pouco antes do nascimento de minha primeira filha (Ana Morena), não pude senti-lo em toda a sua plenitude. Em primeiro lugar, a exibição se deu num telão de vídeo; em segundo lugar, sem as cores originais. (Em terceiro lugar, durante quatro ou cinco minutos perdi a concentração no filme. Mas isso eu não poderia adivinhar que iria acontecer.) Afinal, Godard é Godard, e eu estava ali, num Vídeo-Clube Bar, numa rua escondida de Botafogo, para ver o inédito
Passion.
A sessão fora marcada para as 22h. Às 21:30, mais ou menos, eu já me encontrava na sala, sozinho numa mesa, tomando a minha primeira cerveja da noite. Éramos poucos; dez ou 12 clientes, isto é, espectadores, além dos proprietários do local e de uma garçonete. Na platéia, um conhecido meu: o jornalista Mauro Costa. Mas eu estava ali para ver Godard e não para um papo em mesa de bar.
Tomava a segunda cerveja quando o filme começou a ser apresentado. Como sempre, a emoção me dominava. Decorridos cerca de 40 minutos, de um total de 87, entraram na espaçosa sala quatro sujeitos, que se dividiram em duas mesas. Dois sentaram-se próximos. Ouvi claramente um deles observar para o seu colega: "Cara, vire-se para a tela, estão exibindo um filme". Não tive mais a menor dúvida: eram assaltantes.
Durante alguns minutos perdi a concentração no filme: sair ou não sair. Percebera que Mauro Costa já o fizera, discretamente, depois de pagar a conta e afirmar num tom adequado para a ocasião: "Puxa, que filme chato. Vou continuar bebendo em outro lugar". Eu poderia fazer o mesmo, claro. Decerto, não seria incomodado. Seria compreensível que o fizesse, mesmo sendo a primeira vez que eu abandonaria pela metade um filme de cineasta daquele porte criativo.
Mas Godard era Godard, e o filme estava me sensibilizando. Pensei, então: "Só espero que eles não interrompam a sessão para nos assaltarem. Seria o fim da picada; esperei longos quatro anos pra ver esse Godard". Bom, se não foi exatamente isso que me veio à mente, foi algo parecido. Comecei a torcer para que eles também estivessem gostando de
Passion; assim, talvez não interrompessem a apresentação. Mas, diabos, a cópia nem legendas tinha! O filme continuava, continuava, e voltei a me concentrar nas imagens de Godard.
Finda a sessão, quando já me preparava para pagar a conta, os quatro anunciaram o assalto. Um deles, bastante nervoso, por sinal o que ficara de costas para o telão, tomou conta do nosso grupo, recuado para um canto da sala. Enquanto isso, os outros três levavam todo o equipamenrto de vídeo e mais a fita de Godard (na verdade, pertencia ao meu amigo cineasta Luiz Rosemberg Filho, que a trouxera de Paris). O cara que ficou nos encurralando, com uma arma na mão, obrigou-nos a jogar no chão toda a nossa (pouca) grana, mais relógios e outros pertences. E ainda implicou comigo, esfregando o seu revólver no meu rosto: "Barbudo, você está escondendo a grana, vou te apagar, vou te apagar". E eu, aparentando calma: "Quequiéisso, cara, tô maluco pra fazer uma coisa dessas?". Realmente, não estava escondendo nada.
Mas o pior acontecia ao meu lado: a garçonete, agachada, com as mãos encobrindo o rosto, chorava como uma desesperada condenada à morte. Alguns de nós tentavam acalmá-la. Inutilmente. Ainda bem que o sujeito, muito nervoso e provavelmente drogado, não percebeu nada. Os outros três, "atarefados", menos ainda. Foram cerca de 20 minutos que pareciam não ter fim. Depois ainda nos ameaçaram: "Esperem meia-hora antes de irem embora; estaremos na esquina e mataremos o primeiro que tentar sair". Jogo de cena, evidentemente.
Os proprietários, então, serviram uma dose de uísque pra todos nós. E, só então, ficamos sabendo o motivo do choro desenfreado da garçonete: o assaltante que nos ameaçara diretamente morava em seu edifício. Naquele mesmo dia, tomaram o elevador juntos, para andares diferentes. Por sorte dela, ele não a reconhecera. Alguns a aconselhavam a não contar nada para os donos do vídeo-clube, e muito menos para a polícia; outros, que mudasse imediatamente de endereço. Na dúvida, fiquei pensando na beleza do filme de Godard. Recolhi-me ao silêncio e ao uísque.
Na próxima quarta, quase 18 anos depois, estarei revendo
Passion, no mesmo bairro, quase na mesma rua. Ou melhor: estarei
vendo Passion. Não mais numa cópia de vídeo. E sem assaltantes por perto, assim espero.
[ Texto a ser publicado no meu próximo livro:
A cinemateca imaginária, edição do Sebo Vermelho ]